Folha de S. Paulo


'O gato se tratava do companheiro...'

Quer a frase inteira, caro leitor? Lá vai: "O gato se tratava do companheiro perdido de Daniela". E então? Isso é palatável, inteligível? Parece que sim. Com pouco esforço, entende-se o que se quis dizer: o tal gato era o companheiro perdido de Daniela ou o tal gato perdido era o companheiro de Daniela. Até aí, tudo bem, mas não podemos nos contentar com a simplória e tosca tese de que o que importa é comunicar.

No padrão formal da língua, construções com o verbo "tratar" empregado com o sentido que ele tem na frase citada costumam apresentar estrutura diferente, mais ou menos como se vê neste caso: "A roubalheira na Petrobras vem de longe, muito longe. Trata-se de um dos tantos 'esquemas' que abastecem barrigas já suficientemente sebosas".

Como se vê, o verbo "tratar" foi empregado com o pronome "se" e na terceira do singular, o que ocorreria mesmo que o termo posterior ao verbo estivesse no plural: "Trata-se de problemas insolúveis, que existem desde que Cabral chegou".

É claro que o caro leitor já leu e já ouviu gente graúda dizer "Tratam-se de problemas insolúveis". Não custa lembrar que, na tradição da língua, verbos que regem uma preposição ("de", no caso) ficam na terceira do singular quando associados ao pronome "se" em construções em que se indetermina o agente do processo expresso pelo verbo: "Precisa-se de operários", "No Brasil, ainda se confia em malandros engravatados"; "Trata-se das velhas práticas dos comandantes das capitanias hereditárias" etc.

Voltemos à construção citada no início. No padrão formal, ela assumiria outra forma, algo como "Trata-se do companheiro perdido de Daniela". E o gato? Certamente teria sido citado antes, o que bastaria para que se soubesse do que se falava. Se for preciso, volte ao exemplo do segundo parágrafo.

E como se explica a construção citada, cada vez mais frequente nos noticiosos escritos e nos que se ouvem no rádio e na TV? Uma das possibilidades é a pura e simples substituição do óbvio pelo "chique": "O gato perdido era o companheiro de Daniela". Simples assim, não?

Outra possibilidade se explica por um fato linguístico muito comum: a retomada de um elemento (o gato, no caso) já citado e situado no texto e no contexto e que, por isso, não precisaria mais ser citado, mas... Mas talvez o falante sinta necessidade de citá-lo novamente, e aí surgem construções como a analisada.

O caso não difere muito de outro, que circula há um bom tempo: "O presidente do PT, ele disse que o panelaço foi articulado por...". Melhor nem continuar. Essa declaração conseguiu ser mais estúpida, burra e vil que o panelaço. Quanto à construção em si, esse "ele" se explica pela necessidade de confirmar, ressaltar o elemento do qual se fala.

É bom deixar bem claro: no padrão culto, sobretudo na escrita, esse "ele" (ou "ela") é inadequado.

Quanto ao verbo "tratar", não custa reafirmar: no padrão culto, não se cruza a construção que ocorreria com o verbo "ser" ("O gato perdido era o companheiro de Daniela") com a que ocorreria com "parecer" ("Tratava-se do companheiro de Daniela", caso em que o gato certamente já teria sido citado).

Em suma, nada de "A roubalheira atual trata-se apenas de mais uma...". Vá ao simples e correto: "A roubalheira atual é apenas...". E não se esqueça de manter o verbo "tratar" no singular nos casos citados: "Trata-se de velhos corruptos da triste política tupiniquim". É isso.

inculta@uol.com.br


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