Folha de S. Paulo


'Se o cidadão não conter os ânimos...'

Na semana passada, abordei uma questão da última prova da Fuvest. Na coluna de hoje quero analisar uma pergunta da última prova da Unesp, uma das três universidades públicas do Estado de São Paulo.

A questão se apoia num trecho da conferência "Sobre Algumas Lendas do Brasil", proferida por Olavo Bilac (1865-1918). O trecho que interessa para a questão que será analisada é este: "E nós, os civilizados do litoral, compreendemos e contemos em nós esses dois princípios antagônicos, Deus e o Diabo".

O enunciado da questão elaborada pela banca da Unesp era curto e grosso: "Qual é a forma infinitiva do verbo destacado e em que tempo e modo está flexionado?". A forma verbal destacada é "contemos".

A questão é interessante, embora alguns possam ver nela uma tentativa de aplicar nos candidatos uma "pegadinha". E onde estaria a pegadinha? Bem, ela vai ser explicitada ao longo deste texto.

Posto isso, vejamos o que ocorre. A que tempo e modo pertence a forma verbal "falamos", por exemplo? Depende. Pode pertencer ao presente do indicativo ("eu falo, tu falas, ele fala, nós falamos...") ou ao pretérito perfeito do indicativo ("eu falei, tu falaste, ele falou, nós falamos..."). Só pelo texto e pelo contexto é que se podem definir o tempo e o modo de "falamos" (e de um zilhão de formas análogas, como "pensamos", "bebemos", "pedimos" etc., etc., etc.).

Pode-se dizer que isso ocorre com 100% dos verbos? Não, não e não. Com muitos dos verbos irregulares, essa "igualdade" não ocorre. Quer exemplos? Vamos lá: fazemos/fizemos, dizemos/dissemos, trazemos/trouxemos, damos/demos, sabemos/soubemos, pomos/pusemos etc., etc., etc.

Por falar em "pomos/pusemos", dia desses o treinador (agora ex-treinador) de um dos nossos mais populares times de futebol disse algo como "Aquilo que nos propomos a fazer no início deste ano...". Ele queria dizer "propusemos", e não "propomos".

Pois bem. Onde está a eventual pegadinha da questão da Unesp? Volte a ela, por favor. Bilac empregou duas formas verbais: deixando de lado o contexto, a primeira ("compreendemos") pode ser do presente ou do pretérito; a segunda ("contemos") só pode ser do...

E então, caro leitor? Os advogados do Diabo poderão dizer que a forma "contemos" pode ser do presente do subjuntivo do verbo "contar" ("que eu conte, que tu contes, que ele conte, que nós contemos..."). Faz sentido pensar nisso no trecho em questão? Nem a pau, Juvenal.

No trecho de Bilac, a forma infinitiva de "contemos" é "conter". E o resto (o tempo e o modo)? "Contemos" só pode ser do presente do indicativo (primeira pessoa do plural), já que, no pretérito perfeito, o verbo "conter", derivado de "ter", apresenta as formas "eu contive, tu contiveste, ele conteve, nós contivemos...".

A suposta "pegadinha" está justamente em tentar fazer cair na arapuca quem conjuga o pretérito perfeito de "conter" como se ele fosse regular, como fez o treinador citado, que trocou "propusemos" por "propomos", dando a "propor" uma regularidade que ele não tem.

Dia desses ouvi alguém falar na TV sobre a violência no trânsito. "O cidadão precisa ter calma. Se ele não conter os ânimos...". No padrão formal, esse "conter" vira "contiver", do futuro do subjuntivo do verbo "conter", irregular como todos os membros da família, a começar pelo "pai", o verbo "ter". É isso.

inculta@uol.com.br


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