Folha de S. Paulo


Lendo um trecho de um texto clássico

Há ONZE dias, a Fuvest incluiu em sua prova de português um fragmento do romance "Til" (de 1871), de José de Alencar (1829-1877). Do excerto escolhido, vou citar o trecho em que se apoiou uma das questões, voltada para a avaliação da competência de leitura a partir do reconhecimento de alguns elementos da sintaxe.

Eis o trecho: "Tornando da malograda espera do tigre, alcançou o capanga um casal de velhinhos, que seguiam diante dele o mesmo caminho e conversavam acerca de seus negócios particulares. Das poucas palavras que apanhara, percebeu Jão Fera que destinavam eles uns cinquenta mil-réis (...) à compra de mantimentos, a fim de fazer...".

Vamos à questão: "Considere os seguintes comentários sobre diferentes elementos linguísticos presentes no texto: I. Em 'alcançou o capanga um casal de velhinhos', o contexto permite identificar qual é o sujeito, mesmo este estando posposto; II. A forma verbal 'seguiam' no trecho 'que seguiam diante dele o mesmo caminho' poderia estar no singular sem prejuízo para a correção gramatical; III. No trecho 'que destinavam eles uns cinquenta mil-réis', pode-se apontar um uso informal do pronome pessoal reto 'eles', como na frase 'Você tem visto eles por aí?'". A banca perguntou o que é verdadeiro e o que é falso.

O primeiro item (volte a ele, por favor) é bem representativo de um fato muito comum até pelo menos o meio do século passado: a ordem inversa. Se você ler manchetes de edições antigas dos nossos jornais, verá que é muito comum o sujeito posposto, isto é, posto depois do verbo. Veja estes exemplos (da "Folha da Manhã", de 8/05/1945): "Renderam-se incondicionalmente aos exércitos aliados as forças germânicas de terra, mar e ar"; "Recusa-se à rendição o comandante alemão em Praga".

O sujeito da primeira manchete ("as forças germânicas de terra, mar e ar") é o último termo da oração.

O sujeito da segunda também é posposto ("o comandante alemão em Praga"). Numa edição de hoje, esses títulos seriam impensáveis. O primeiro seria banido só pelo tamanho. Ainda que deixássemos de lado esse pormenor, teríamos os termos dispostos em outra ordem, não haveria artigo definido (pelo menos no sujeito), e os verbos estariam no presente. Teríamos isto: "Forças germânicas de terra, mar e ar se rendem (ou 'rendem-se') incondicionalmente aos exércitos aliados".

A segunda ficaria assim: "Comandante alemão em Praga se recusa (ou 'recusa-se') à rendição.

Voltemos ao item I da questão da Fuvest, que é mais do que correto. De fato, o contexto permite identificar o sujeito de "alcançou o capanga um casal de velhinhos". É "o capanga" ("o capanga alcançou um casal de velhinhos"). No item II, também correto, a flexão verbal "seguiam" concorda com "velhinhos", especificador do núcleo do sujeito ("um casal de velhinhos"), mas poderia sim ser substituída por "seguia", que concordaria com o núcleo do sujeito ("casal").

Por fim, no item III, que é incorreto, o pronome "eles" nem de longe representa o que ocorre no uso informal da língua. Esse "eles" é sujeito (posposto, de novo). Na ordem direta, teríamos isto: "...que eles destinavam uns cinquenta mil-réis (...) à compra de mantimentos...".

No item III há outro sujeito posposto ("Jão Fera"). Na ordem direta, teríamos: "...que apanhara, Jão Fera percebeu que eles destinavam uns cinquenta mil-réis (...) à compra de mantimentos". É isso.


Endereço da página: