Folha de S. Paulo


'Sexo traz mais felicidade que dinheiro'

Estava na versão brasileira de um dos sites mais conhecidos do planeta: "Sexo traz mais felicidade do que dinheiro". O caro leitor jura de mãos e pés juntos que a frase estampada no título tem apenas um sentido? Eu não ponho nem um dedinho no fogo, quanto mais mãos e pés.

Lendo o texto relativo ao título citado, via-se que nele se falava de um estudo de uma universidade inglesa a respeito das relações felicidade/sexo e felicidade/dinheiro. Um tanto confuso, em alguns momentos o texto desmente o título, em passagens como esta: "Fazer sexo ou ganhar 100 mil de salário geram níveis de felicidade equivalentes". Como se vê, a lambança não se restringe ao título.

Mas voltemos ao ponto inicial: o título da matéria é ou não é ambíguo? Estruturalmente é. Parece que a intenção do redator é dizer que a felicidade que o sexo traz supera aquela que o dinheiro traz, mas é perfeitamente possível entender que o sexo traz dinheiro e felicidade, e que a cota de felicidade trazida pelo sexo supera a que o dinheiro traz.

Sem conhecer o teor do texto, pode-se pensar, por exemplo, em alguém que viva do apelo sexual e/ou do sexo propriamente dito e que se sinta feliz com sua/s atividade/s, embora os rendimentos resultantes desse ofício não sejam expressivos. Situação semelhante se vê quando se diz, por exemplo, que, quando volta do exterior, determinada pessoa traz mais livros que roupas.

Antes que alguém pergunte se não é obrigatório colocar o "do" antes do "que" e/ou se isso muda alguma coisa, vou logo dizendo que tanto faz: "Sexo traz mais felicidade (do) que dinheiro"; "Ela sempre traz mais livros (do) que roupas".

Muitas vezes, o nó da questão está na omissão de um verbo. É o que ocorre na frase que está no título desta coluna, em que são possíveis dois entendimentos: a) "felicidade" e "dinheiro" são complementos da forma verbal "traz", cujo sujeito é "sexo"; b) a forma verbal "traz" tem apenas um complemento ("felicidade"); o termo "dinheiro" é sujeito de uma forma verbal implícita ("traz"), o que se representaria com algo como "Sexo traz mais felicidade (do) que dinheiro (traz)".

Estamos diante de um dos tantos casos delicados da nossa língua: as comparações, que, não raro, causam mesmo esses embaraços, que muitas vezes ficam restritos ao campo da estrutura e são esclarecidos pelo contexto. É o caso, por exemplo, deste trecho de "Até Amanhã", de Noel Rosa: "Até amanhã, se Deus quiser / Se não chover, eu volto pra te ver, ó mulher / De ti gosto mais que outra qualquer...". É evidente que o "eu" da passagem "De ti (eu) gosto mais que outra qualquer" gosta mais da mulher representada pelo pronome "ti" do que de qualquer mulher que haja no planeta, mas, tomada ao pé da letra, a passagem citada informa que o sentimento desse "eu" por "ti" supera o sentimento que qualquer mulher do planeta possa ter por "ti".

O contexto deixa claro o sentido, mas, tomada ao pé da letra, a estrutura permite outra interpretação, que não haveria se fosse empregada a preposição "de", regida pelo verbo "gostar": "De ti gosto mais que de outra qualquer". Se isso caberia na melodia são outros quinhentos...

Voltando ao nosso título, o que se poderia fazer para que ele não fosse estruturalmente ambíguo? Bem, desprezando o fato de que o texto do site parece contradizer o título, poder-se-ia pensar em algo como "Dinheiro traz felicidade, mas sexo traz mais" ou, com o artigo definido, para maior clareza, em "O sexo nos faz mais felizes (do) que o dinheiro". É isso.

inculta@uol.com.br


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