Folha de S. Paulo


'Caberá só a mim esquecer...'

Eu estava chegando ao jornal. No rádio do carro, começou uma daquelas canções que não consigo deixar de ouvir até o fim. Os inconfundíveis acordes iniciais me informavam que Lulu Santos cantaria "Eu gosto tanto de você que até prefiro esconder..." ("Apenas Mais Uma de Amor").

Tudo na canção é comovente: o arranjo, a voz de Lulu, a melodia, a sensibilidade dos versos. O cuidado com a língua não fica atrás, como se vê neste passo: "Se amanhã não for nada disso, caberá só a mim esquecer".

Atire a primeira pedra quem nunca ouviu algo como "Antes de verbo não se usa mim" ou "Antes de verbo sempre se usa eu" ou ainda "Não existe para mim fazer" etc.

O caro leitor certamente já percebeu que o foco está na passagem "Caberá só a mim esquecer". A julgar pelo que se ouve por aí, essa passagem conteria um "erro", já que nela se vê o pronome "mim" antes de um verbo no infinitivo ("esquecer"). Por essa "tese", teríamos de imaginar Lulu Santos a cantar a seguinte bobagem: "Caberá só a eu esquecer".

Xô, bobajada! A questão não se resolve pela posição do pronome, mas pela função dele. Uma frase como "É uma honra para mim estar aqui", por exemplo, é perfeitamente adequada ao padrão culto, visto que nela o pronome "mim" não se liga ao verbo "estar", mas ao substantivo "honra", o que se percebe facilmente com a mudança na ordem dos termos ("Estar aqui é uma honra para mim").

Em situação formal, alguém diria "Estar aqui é uma honra para eu"? Certamente não. Pois na frase "original" ("É uma honra para mim estar aqui"), o pronome é mesmo "mim" (e não "eu"), e pela mesma razão: a relação dele é com o substantivo "honra" ("honra para alguém"), e não com a forma verbal "estar".

Esse fato explica também por que uma frase como "É uma honra para eles receber a condecoração" é correta, visto que nela o pronome "eles" não se liga a "receber", mas a "honra", ou seja, o pronome "eles" não é sujeito de "receber"; é complemento de "honra". Novamente, basta trocar a ordem: "Receber a condecoração é uma honra para eles". Alguém trocaria "receber" por "receberem"?

Agora, uma pergunta venenosa. Como você preencheria a lacuna de "É fundamental para __ comparecer à solenidade"? Poria "mim" ou "eu"? Se você se baseou no que viu até aqui, respondeu "mim" –e acertou, já que é perfeitamente possível pensar em algo como "Comparecer à solenidade é fundamental para mim".

E onde é que está o veneno, então? Está em que, na verdade, a resposta não é nem "mim" nem "eu"; é "depende". E depende do quê? Do contexto. Imagine isto: converso com alguém sobre a conveniência de comparecer a uma solenidade. Digo ao meu interlocutor que isso se deve ao fato de eu ainda não ter recebido o convite formal. Aí ele me pergunta, curto e grosso: "Mas é necessário um convite?". E eu: "É mais do que necessário. É fundamental para eu comparecer à solenidade". Agora, o pronome cabível é mesmo "eu", já que o que se tem, na verdade, é a seguinte estrutura: "O convite é fundamental para eu comparecer à solenidade" (que equivale a "O convite é fundamental para que eu compareça...").

Moral da história: devagar com o andor. A gramática não é nada sem o contexto. E voltemos aos belos versos de "Apenas Mais Uma de Amor": "Se amanhã não for nada disso, caberá só a mim esquecer". Sim, caberá a mim; a mim, e não "a eu", já que a tarefa (a sempre árdua tarefa) de esquecer caberá só a mim. É isso.

inculta@uol.com.br


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