Folha de S. Paulo


Bastaria relacionar, mas...

Estava na capa do UOL, na semana passada: "Brasil sua, mas vence Chile com gol de Robinho no último jogo do ano". A forma verbal "sua", do verbo "suar", logo me fez pensar no antológico poema "A Um Poeta" (1919), de Olavo Bilac: "Longe do estéril turbilhão da rua,/ Beneditino, escreve! No aconchego/ Do claustro, no silêncio e no sossego,/ Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!".

As formas verbais transcritas não são do presente do indicativo, não, já que não se afirma que o beneditino escreve, trabalha, teima etc. Diz-se a ele que escreva, que trabalhe, que teime etc. As seis formas verbais que há no excerto transcrito são da segunda pessoa do singular (tu) do imperativo afirmativo, isto é, há conselhos, ordens, exortações.

Pois bem. Vamos ao xis da questão, que é a forma "sua", do verbo "suar". O caro leitor certamente já ouviu alguém dizer que "soa" muito quando faz calor. Também já deve ter ouvido alguém dizer "Eu soo muito quando faz calor".

Ninguém soa quando faz calor, caro leitor. Se fosse assim, bastaria fazer calor para que as pessoas saíssem por aí fazendo blim-blom, blem-blem ou coisa parecida. "Soo" e "soa" são formas do verbo "soar", que significa "produzir som", "ecoar" etc. Quando faz calor, muita gente "sua", do verbo "suar", cuja primeira pessoa do singular do presente do indicativo é "suo", e não "soo" ("Suo muito quando faz calor").

Poder-se-ia apontar uma série de possíveis motivos para esse desvio, mas o fato é que, por alguma razão, o falante tende a rejeitar a forma "sua" como flexão verbal, conferindo-lhe apenas o valor de pronome possessivo.

Se o caro leitor me permite, faço uma perguntinha, despretensiosa: será que não é possível levar em conta as letrinhas, ou seja, a grafia, na hora de relacionar as flexões de "suar" (eu suo, tu suas, ele sua, nós suamos, vós suais, eles suam, no presente do indicativo) com o próprio verbo "suar" e com substantivo "suor"? Será que não é possível relacionar as formas "soo" e "soa", por exemplo, com "soar", de que são flexões?

Para muita gente, parece que relacionar qualquer coisa com qualquer coisa é algo extremamente difícil. Veja só: no tradicional almoço das quintas-feiras com o meu irmão, ele me falou de uma mensagem que recebeu, na qual havia um vídeo de um velho programa de Fausto Silva. Fui conferir (se quiser ver, basta escrever "Faustão holandês" no YouTube). Inacreditável! Os três participantes tinham de dizer qual era determinado país, do qual se davam algumas características. O primeiro recebeu quatro dicas. Errou. O segundo, as mesmas quatro e mais uma.

Errou. O terceiro, as mesmas cinco e mais uma. Errou. Sabe qual era a sexta dica do terceiro candidato sobre o tal país? "Seu idioma é o holandês." Sabe qual foi a resposta? Itália!

Relacionar não é mesmo o forte de muita gente. São vários os vestibulares e concursos públicos que fazem questões cuja resposta está no enunciado. Basta ler com atenção. Eu disse "atenção"? Pois é. Em tempos em que as pessoas estão cada vez mais em n lugares ao mesmo tempo, mas na verdade não estão em lugar algum, exigir um mínimo de atenção parece coisa fora de propósito. Ler com atenção, então... É isso.

inculta@uol.com.br


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