Folha de S. Paulo


'Bom cabrito é o que mais berra'

"Sou brasileiro de estatura mediana / Gosto muito de fulana / Mas sicrana é quem me quer (...) / Eu sou poeta e não nego a minha raça / Faço versos por pirraça / E também por precisão (...) / Brasileiro, tatupeba, taturana / Bom de bola, ruim de grana (...) / Por onde passo deixo rastro, deito fama / Desarrumo toda a trama / Desacato Satanás (...) / Diz um ditado natural da minha terra / Bom cabrito é o que mais berra / Onde canta o sabiá / Desacredito no azar da minha sina / Tico-tico de rapina / Ninguém leva o meu fubá."

Esses memoráveis versos fazem parte de "Lero-Lero" (melodia de Edu Lobo; letra de Cacaso). Cacaso era o apelido de Antônio Carlos de Brito (1944-1987), professor de literatura da PUC-RJ e letrista, dos grandes.

Pois essa letra do grande Cacaso é mais uma das que nos fazem sentir a grandeza e a importância da poesia, por ser arte e por ser ponte entre nós e o mundo. O caro leitor já leu e releu o excerto de Cacaso e já o relacionou com o que ocorre no Brasil neste momento? É claro que me refiro aos diversos movimentos Brasil afora e, consequentemente, aos seus propósitos e despropósitos, ao que se lê nos muitas vezes geniais cartazes empunhados pelos participantes, à lamentabilíssima atuação das polícias militares em diversos episódios etc., etc., etc.

Voltemos aos versos de Cacaso. O primeiro deles na verdade não se refere apenas a uma característica do sujeito lírico. Mediano aí é também o brasileiro ampliado, que sai do eu lírico e vai para o padrão médio. Esse brasileiro, que faz versos por pirraça e por precisão, que é bom de bola e ruim de grana, que, por onde passa, deixa rastro e deita fama, desarruma toda a trama e desafia Satanás...

Irônico e mordazmente ambíguo, o texto de Cacaso acerta na mosca quando, nos últimos versos do parágrafo anterior e na caracterização do tico-tico, que, no imaginário brasileiro, é dócil, transforma o simbólico pássaro nacional numa ave de rapina (do qual não se tasca o fubá...).

Os últimos acontecimentos Brasil afora (incluídas declarações de autoridades e a atônita cobertura de parte da imprensa) se encaixam como luva no poema-vaticínio de Cacaso, cuja inquietante ambiguidade (traço de boa parte da boa poesia) nos faz querer saber quem de fato é o Satanás desafiado, qual é a trama que se desarruma etc.

Mas o melhor de tudo está em "Diz um ditado natural da minha terra / Bom cabrito é o que mais berra / Onde canta o sabiá / Desacredito no azar da minha sina...". Como bem sabe o leitor, o ditado nacional é outro; é o infame "bom cabrito não berra", profundamente ligado à nossa infame história de capitanias hereditárias, transformação do público em privado etc., etc., etc. É imperativo salientar mais uma vez a devastadora ironia e a mordaz ambiguidade de Cacaso presentes nos versos citados no início deste parágrafo, fundamentais para que se compreenda o caráter vaticinador do poema.

"O gigante acordou" diziam muitos dos cartazes vistos nas manifestações Brasil afora. Não sei se acordou de vez, mas parece que, ao menos desta vez, a sina de bom cabrito, aquele que não berra, foi por água abaixo. Já dizia Chico Buarque, outro gênio da nossa poesia musical, na antológica "Bom Conselho" (de 1972): "Ouça um bom conselho / Que eu lhe dou de graça / Inútil dormir que a dor não passa / Espere sentado / Ou você se cansa / Está provado, quem espera nunca alcança".

Como bem dizia o educador Paulo Freire, a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Para bom entendedor, meia palavra basta; para mau entendedor, nem todas as palavras do mundo bastam. É isso.


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