Folha de S. Paulo


'Cidadanismo' interrompido

Lalo de Almeida - 17.jun.2013/Folhapress
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 17-06-2013: Manifestantes do MPL (Movimento Passe Livre), durante protesto contra o aumento do preço da passagem, no Largo da Batata, em PInheiros, em São Paulo (SP). A imagem faz parte do documentario
Protesto contra o aumento do preço da passagem, em junho de 2013, no Largo da Batata, em SP

Saiu há pouco na Inglaterra o novo livro de Paolo Gerbaudo, "The Mask and the Flag: Populism, Citizenism and Global Protest" (Oxford University Press, 2017, 318 pág.) que traz contribuições importantes para nossas reflexões no quarto aniversário dos protestos de junho de 2013.

O livro é uma tentativa muito bem informada de balanço sociológico dos movimentos do ciclo global de lutas que vai de 2011 a 2013 e que inclui a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, o movimento dos indignados na Espanha e na Grécia e os protestos de 2013 no Brasil e na Turquia.

Gerbaudo encontra os traços distintivos desses movimentos por meio de uma comparação sistemática de suas características com as dos movimentos do ciclo anterior, aqueles das lutas "antiglobalização" do final dos anos 1990 e início dos anos 2000.

Ele nota traços claros de continuidade entre os dois momentos, como a valorização das práticas "horizontais" de democracia direta, mas encontra também diferenças marcantes. A principal é que, ao contrário da retórica e da identidade de esquerda anticapitalista dos protestos antiglobalização, os protestos do ciclo mais recente tentam escapar da oposição esquerda-direita, o que Gerbaudo chama de "cidadanismo". Em vez de negar abstratamente o Estado capitalista, esses novos movimentos reivindicam e às vezes propõem reformas progressistas de maneira pragmática. As experiências municipalistas na Espanha seriam as expressões mais virtuosas deste difícil equilíbrio entre o impulso horizontalista e um pragmatismo inclusivo por mais soberania e mais direitos.

As mobilizações deste novo ciclo não são mais animadas por ativistas e militantes, mas por cidadãos "comuns" chamados à ação, apenas auxiliados por ativistas veteranos. Esses cidadãos não têm a formação política ou a experiência organizativa que são as credenciais exigidas para serem reconhecidos como "militantes" pelos movimentos de esquerda. Mas sua inconsistência ideológica, antes de ser uma fraqueza, é sua força, porque os aproxima dos demais cidadãos, facilitando a convocação e impedindo que depreciem as pessoas comuns por não serem suficientemente "conscientes", "politizadas" ou "revolucionárias". A combinação do impulso horizontalista, herdado do ciclo anterior, com esse caráter não-ativista e pragmático, Gerbaudo dá o nome de "anarco-populismo".

Esse anarco-populismo não se dirige mais aos ativistas de esquerda e nem espera que pessoas comuns se transformem em militantes. Em vez de usar o jargão classista do "proletariado" ou da "classe operária", os movimentos fazem apelos amplos à "cidadania", ao "povo", às "pessoas comuns", aos "indignados" ou aos "99%", em oposição às oligarquias políticas e econômicas.

Mas, ao contrário do populismo clássico, que se constrói por meio de lideranças fortes, o anarco-populismo aposta num fortalecimento da sociedade civil auto-representada em assembleias populares, cuja expressão icônica são as ocupações de praças, como a praça Tahir no Cairo, a praça do Sol, em Madri, ou a praça da liberdade, em Nova Iorque.

A explicação de Gerbaudo para o sentido geral do processo global dá pistas interessantes para pensarmos sobre a experiência brasileira. O Brasil também viveu seu momento cidadanista em junho de 2013, mas seu experimento foi interrompido e fraturado, deixando frutos parciais e distorcidos. O drama brasileiro é em parte tributário deste bloqueio.

Em junho de 2013, protestos contra as tarifas de transporte, convocados pelo MPL, um movimento da esquerda autônoma, herdeiro direto do movimento antiglobalização, logo transbordou seu propósito inicial e se converteu num grande levante da sociedade brasileira contra o Estado, por mais direitos sociais e menos corrupção.

Quando esse transbordamento aconteceu, na segunda quinzena de junho, a esquerda, inclusive a esquerda autônoma, se assustou com o grande contingente de cidadãos comuns que foram às ruas sem as credenciais tradicionalmente exigidas pela militância. Ao invés de abraçá-los, numa virada populista, a maior parte dos ativistas os rejeitaram, desprezando-os como uma multidão nacionalista, reformista e despolitizada, deixando-a órfã de organizadores experientes. Uma parte dessa insatisfação órfã terminou sendo explorada mais tarde por lideranças da direita, na chave da insatisfação com a corrupção, convertida em antipetismo.

Houve, assim, uma interrupção e uma fratura do "cidadanismo" brasileiro. De um lado, a insatisfação popular, das pessoas comuns, foi mantida viva e explorada por novos movimentos de direita como o MBL e o Vem Pra Rua; de outro, o horizontalismo esvaneceu quando os movimentos autônomos que eram seus guardiões se retraíram, sem condições ou sem vontade de acolher os "despolitizados".

A união virtuosa original entre a dimensão populista e a dimensão horizontalista permaneceu em correntes marginais do processo social brasileiro em movimentos como a Assembleia Popular Horizontal de Belo Horizonte, ainda em 2013, nos protestos contra a Copa do Mundo, em 2014, e nas ocupações dos estudantes secundaristas, em 2015 e 2016.

Essas mobilizações devem ser lembradas hoje como as expressões mais puras do espírito de Junho de 2013 e, no seu conjunto, mostram tudo o que a sociedade civil pode almejar quando concilia o impulso horizontalista e democrático com apelos pragmáticos a todos os brasileiros por mais diretos.


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