Folha de S. Paulo


Sem partido?

Raquel Cunha - 31.mar.2016/Folhapress
Alunos em escola estadual na região da Barra Funda zona oeste de São Paulo
Alunos em escola estadual na região da Barra Funda zona oeste de São Paulo

Semana passada, um incidente envolvendo o vereador paulistano Fernando Holiday e o secretário municipal de educação Alexandre Schneider trouxe outra vez à tona o debate sobre a "Escola Sem Partido". A polêmica teve início quando o vereador, ligado ao MBL, divulgou um vídeo no qual anunciava uma "visita surpresa" a duas escolas municipais para "verificar" se havia nelas "doutrinação ideológica". A iniciativa provocou uma firme resposta do secretário que fez um post no Facebook considerando o gesto uma tentativa abusiva de intimidar os professores da rede. O conflito, segundo a Folha, gerou até mesmo um pedido de demissão motivado pela hesitação do prefeito João Doria em respaldar o secretário.

A "Escola Sem Partido" é uma campanha idealizada pelo advogado Miguel Nagib em 2004. O nome da campanha e as declarações do seu fundador sugerem que ela persegue uma finalidade nobre: impedir que professores façam proselitismo político-partidário em sala de aula. Quem poderia se opor?

Mas por trás da fachada sensata esconde-se uma série de truques que a transformam no seu oposto. A campanha parece querer coibir o uso da docência para fins de propaganda política e ideológica, mas, na verdade, se esforça em combater uma determinada corrente de pensamento, além de tentar forçar a escola a reconhecer preceitos religiosos completamente alheios ao ensino laico. É um embuste macarthista e obscurantista.

No esforço de demonstrar o problema que alega combater, o site da campanha coleciona evidências anedóticas do proselitismo de professores de esquerda que estariam utilizando a sala de aula para fazer propaganda política. Mas a campanha não parece interessada nos religiosos que têm utilizado as aulas de filosofia para fazer pregação cristã ou nos professores conservadores de história e sociologia que enaltecem em aula as virtudes do regime militar ou o progresso trazido pelo liberalismo econômico, para ficar com exemplos para os quais poderíamos facilmente reunir outras evidências anedóticas. O site da campanha diz que pode até ser que existam "professores de direita que usam a sala de aula para fazer a cabeça dos alunos", mas, se existirem, eles não são relevantes —trata-se de meros "franco-atiradores", ao contrário dos professores de esquerda que fariam um trabalho "sistemático".

Esse duplo padrão que minimiza a atuação dos professores de direita e exagera a atuação dos de esquerda deveria ser suficiente para despertar a desconfiança para o desígnio oculto da campanha que é o de conduzir uma perseguição seletiva e macarthista aos professores progressistas. Em vez daquilo que finge ser –uma defesa da "neutralidade" do ensino– seu trabalho prático é reduzir a diversidade de opiniões a que nossos estudantes são apresentados, expondo-os unicamente ao pensamento conservador. A intenção não parece ser pôr fim à pregação, mas garantir que a pregação seja de uma doutrina só.

Infelizmente, isso ainda não é tudo. Os dois projetos de lei promovidos pela campanha (na Câmara e no Senado ) também buscam limitar o ensino de ciências que contradiga valores morais e religiosos que os estudantes possam ter recebido dos pais. A proposta cercearia o ensino das principais teorias cosmológicas da física sobre a origem e a dinâmica de expansão do universo e limitaria quase todo o ensino de biologia que tem como eixo a teoria da evolução.

O proselitismo político em sala de aula é condenado por toda a comunidade docente. Embora a dimensão dos valores seja muitas vezes indissociável do aprendizado das ciências, os professores sabem que uma boa educação nunca virá da pregação doutrinária de uma teoria científica ou dos valores associados a ela, mas apenas da exposição a uma pluralidade de pontos de vista mediada por uma postura crítica que permita formar um juízo equilibrado. Não é perseguindo os professores progressistas e permitindo que a religião interfira no ensino das ciências que vamos promover esse ideal.


Endereço da página:

Links no texto: