Folha de S. Paulo


Na cultura política do Brasil, doutrinas fanáticas têm pouca chance de sucesso

Ricardo Borges - 10.ago.2017/Folhapress
O deputado federal Jair Bolsonaro em coletiva de imprensa para anunciar sua mudança de partido
O deputado federal Jair Bolsonaro em coletiva de imprensa para anunciar sua mudança de partido

Quando o cientista político americano Francis Fukuyama publicou, há quase 30 anos, um famoso ensaio no qual postulava que a evolução das sociedades enfim terminara ("O Fim da História?", 1989), suas teses foram rechaçadas com escárnio. Uma condenação unânime se abateu sobre o ensaio, a ponto de o próprio autor, que tivera o cuidado de situar sua proposição num plano especulativo, escrever um livro para matizá-la.

Essa condenação, entretanto, que se reitera a cada vez que o ensaio é citado, capta mal o seu teor. Fukuyama não disse que a história acabara porque estariam extintos os conflitos, as guerras, crises ou reviravoltas. Toda a agitação que preenche o noticiário haveria de prosseguir, numa intensidade talvez até acelerada.

Sua hipótese se voltava ao nível mais estrutural. No ano do colapso do socialismo soviético, dito "real", o texto propunha que o modelo baseado na economia de mercado combinada à democracia liberal, dadas sua flexibilidade e eficiência, sobrevivera aos totalitarismos de esquerda e de direita no século 20 e talvez fosse o estágio definitivo de organização político-econômica.

É uma especulação que dialoga com a tradição hegeliana, em particular a marxista, que cultivou a noção de que, após uma série de conflitos binários, a sociedade atingiria um estágio de esclarecimento e autoconciliação correspondente ao fim da história. Fukuyama teve o desplante de sugerir que tal utopia não seria a dos planejadores sociais, mas o próprio capitalismo liberal que seus projetos tratavam de substituir.

Profecia temerária e impossível de refutar, dada a escala de tempo implicada em suas ambições. Embora variações de capitalismo tenham se enraizado na Rússia e na China, e a democracia não, ou ainda não, nada no horizonte sugere alternativa ao modelo prevalecente. Exceto pelo terrorismo islâmico, forma regressiva e isolada de resistência, e pela contestação intermitente na franja das grandes cidades, ninguém o desafia.

De repente, porém, surge uma poderosa onda eleitoral de populismo conservador no próprio núcleo do sistema. Na esteira deixada pela crise que acometeu as economias desenvolvidas no período 2008-12, multidões se arregimentam sob as bandeiras do nacionalismo, da xenofobia, do protecionismo, da restauração moral e religiosa, da intolerância e da liderança autoritária. Representam, talvez, o principal obstáculo à globalização liberal desde a queda do socialismo.

Quando se pensa nessa onda vêm à mente os Estados Unidos (Trump), a Inglaterra ("brexit") e a França, onde a direita ultranacionalista se consolidou como segunda força política. Mas o fenômeno ganha amplitude ao se acrescentarem à lista autocratas de países como Rússia (Putin), Turquia (Erdogan), Filipinas (Duterte) e Hungria (Orbán), todos expressão de um eleitorado iliberal e regressivo. Um candidato com esse perfil conta hoje com apoio considerável na população brasileira.

Por quê? Explicações não faltam, nem haveria como aferir a influência de cada qual. Conforme a mecanização avança, e a cada crise do capitalismo, há uma substituição de empregos que exclui gente. Parte da classe média tradicional ficou espremida entre a elite qualificada e imigrantes em ascensão. A inexistência de um contraponto como o socialismo "real", a disputa entre os governos para atrair capitais e a própria demografia (menos trabalhadores, mais aposentados) compeliram à redução de proteções sociais e contribuíram para a desigualdade.

Outro fator é que a China, tendo funcionado durante a maior parte desse tempo como dínamo da economia mundial, vem reduzindo seu ritmo de crescimento, o que levou economias dependentes daquele ritmo a ajustes. Até mesmo as redes sociais, cuja dinâmica favorece o pensamento simplista e o comportamento de manada, teriam parte de responsabilidade.

Estaria o Brasil vacinado contra essa corrente, capaz de impedir por meios democráticos que ela se torne majoritária? Uma cultura política como a nossa, que nunca levou as ideias a sério, que sempre as tomou como emblema ornamental e que cultua a autoimagem da cordialidade, é terreno pouco propício ao êxito de doutrinas fanáticas, posições extremas ou intolerantes. Seria um fascismo diluído, inzoneiro.

Movimentos de direita beligerante costumam prosperar no auge das crises econômicas, não quando elas começam a ficar para trás. A política posterior ao predomínio petista parece sob comando da centro-direita; tão logo se defina uma candidatura nessa faixa, a postulação do deputado Jair Bolsonaro deverá se esvaziar. Dele deveriam ser cobrados compromissos democráticos, ao mesmo tempo que lhe deve estar assegurado o direito a competir e expressar seus pontos de vista, na forma da lei.


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