Folha de S. Paulo


Príncipe da tolerância

1º.jan.1984 - Folhapress
1984: O governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, acena para foto. (Foto: Folhapress)
Então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves acena para foto

Fui uma das muitas pessoas que se avistaram com Tancredo Neves naqueles frenéticos meses antes de ele ser sagrado presidente e morrer sem tomar posse. Era setembro ou outubro de 1984; o que restava do regime militar se dissolvia depressa e a vitória de Tancredo no colégio eleitoral orquestrado pela própria ditadura surgia como quase certa.

Enquanto esperava para passar ao auditório, o candidato recebia cumprimentos numa sala onde enxameavam políticos, intelectuais e jornalistas, todos em pé. O alarido das rodinhas dissimulava uma lenta rotação pela qual assessores conduziam os presentes a um beija-mão em que Tancredo dedicava um minuto à vaidade de cada um.

O presidente brasileiro é um czar da Rússia; a figura diminuta, prosaica e avoenga do candidato já resplandecia na iminência da investidura máxima. Quando fui cumprimentá-lo, ele me puxou de leve, pois falava aos sussurros, ciciando seu sotaque mineiro, como num confessionário. "Vamos precisar de todas as forças vivas da nacionalidade"; dizia platitudes assim com convicção.

Enquanto cochichava, porém, segurava meu antebraço, num movimento firme e sutil, íntimo e profissional, como um ortopedista que inspeciona uma fratura, ponderando a melhor forma de emendá-la. Esse gesto, aquela sala onde se acotovelavam exilados e autoridades da ditadura, toda a cena era uma síntese viva da secular arte nacional da conciliação política.

Ele a encarnou em três momentos dramáticos. Em agosto de 1954, era ministro da Justiça de um Getúlio acossado pela campanha pró-deposição após o atentado contra Carlos Lacerda, no qual foi morto um oficial da Aeronáutica. Empenhou-se para que o governo fizesse concessões à indignação militar e aceitasse a investigação que apontava culpados dentro do palácio, sob a condição de que fosse respeitado o mandato presidencial.

Em outro agosto, o de 1961, foi um dos articuladores do parlamentarismo, artifício que permitiu superar o veto dos militares à posse de João Goulart, vice getulista de Jânio, que renunciara como prelúdio de um golpe presidencial que se frustrou. Tancredo converteu-se em primeiro-ministro (haveria outros dois) no intervalo até a restauração do presidencialismo no plebiscito de janeiro de 1963.

Liderou a corrente de oposição parlamentar moderada nas duas décadas de ditadura militar. Depois da campanha das diretas-já, o mais amplo espectro de forças políticas, excluídas as duas extremidades, convergiu para a candidatura de Tancredo como fórmula de unir as oposições e atrair uma dissidência do regime que morria, mas ainda não era inofensivo.

Ele era ilustrado, embora algo provinciano, e tinha noções de economia, o que é de uma raridade alarmante em sua profissão. Manteve-se numa linha de austeridade e coerência doutrinária como liberal-conservador e católico tradicional. Era moderado no dia a dia, mas categórico nas crises. Queria que Getúlio mandasse prender os generais insurrectos. Brada "canalha!" quando o presidente do Congresso declara vaga a cadeira de Goulart.

O outro aspecto sempre associado à sua fama é o folclore político mineiro, tesouro de casos e ditos impregnados de astúcia sonsa, falsamente simplória, do qual Tancredo foi um dos expoentes. Em sua biografia agora lançada ("Tancredo Neves, O Príncipe Civil", Objetiva), o jornalista Plínio Fraga reconstitui inúmeros desses episódios com o esmero de um ourives.

Essa é dificuldade tradicional, aliás, no gênero biográfico: o autor sabe que será mais lido conforme reunir farto material anedótico, capaz de cativar muitos leitores, e suas fontes tampouco o ignoram. O risco é colorir demais os lances selecionados e conferir-lhes uma proeminência que ofusque processos ocultos, menos pitorescos e mais relevantes.

É certo que Plínio Fraga muitas vezes se afasta do caminho para relatar um caso saboroso e que essas incursões são em parte responsáveis pela extensão de 648 páginas. Mas sua pesquisa é tão minuciosa, tendo ele compulsado tudo o que se escreveu sobre o personagem e recolhido tantos depoimentos inéditos, que o resultado convence por saturação. Há imperfeições, mas este parece ser o livro definitivo sobre Tancredo.

Ao hábito da conciliação se atribui, com bons motivos, parte do atraso brasileiro: transições incompletas, estruturas obsoletas que perduram sob a aparência de mudança. Tancredo ilustra a outra face dessa moeda, expressa numa autêntica tolerância perante o outro e na sabedoria implícita de que ideias são miragens ilusórias demais para que se justifique matar ou morrer por elas.


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