Folha de S. Paulo


A lenta revolução do Brasil

Cícero O. Netto-11.fev.1982/Folhapress
O escritor e historiador Sérgio Buarque de Holanda em entrevista à Folha, em fevereiro de 1982

Depois dos períodos de Fernando Henrique e Lula, cristalizou-se a sensação de que enfim o Brasil encontrara um caminho sustentado até o desenvolvimento. Haveria percalços à frente, mas não esse descarrilamento que sobreveio nos últimos anos. Com ele, voltou uma sensação oposta e bem conhecida, a de que a linha evolutiva da sociedade brasileira é lenta e truncada, incompleta.

Essa ideia de lentidão tem sido recorrente; aparece num dos ensaios clássicos sobre a formação nacional, "Raízes do Brasil" (1936), do historiador Sérgio Buarque de Holanda. Quando completou 80 anos, a obra foi comentada aqui (22.5.16 ). Meses depois veio à luz republicação acompanhada de minucioso aparato crítico, que focalizava as mudanças que o autor introduziu na segunda edição do livro, de 1948.

Ressaltou-se que certas passagens da primeira versão, as quais traziam um timbre iliberal e até antidemocrático, foram suprimidas nas versões posteriores. Aventou-se que o crítico Antonio Candido, em sucessivos prefácios, teria reinventado o livro do amigo, conferindo-lhe uma radicalidade, a fim de situá-lo no campo das ideias progressistas, que não se encontrava no texto.

O autor sempre lutou com esse livro famoso e precoce, que seguiria emendando nas edições subsequentes. Assim como "Casa-Grande & Senzala"(1933), de Gilberto Freyre, "Raízes do Brasil" é uma obra de transição entre uma ensaística pré-científica, calcada em atavismos étnicos, e uma sociologia das condições socioeconômicas, vistas em perspectiva histórica. O pensamento de Sérgio Buarque evoluía, e ele estava, como todo autor, sujeito ao momento.

Todos estão. Paira um espírito de questionamento em relação a esses clássicos da autointerpretação brasileira, o que é ótimo. Mas a crítica muitas vezes se resume a transplantar critérios anacrônicos de olho nos rendimentos políticos de hoje. A obra de Gilberto Freyre, por exemplo, tem sofrido ataques sistemáticos porque sua complexidade não cabe no racialismo vigente nos departamentos de ciências humanas das universidades.

Nada disso é alheio, no entanto, à própria definição de texto clássico, disponível para ser lido e deslido sem jamais exaurir seus tesouros nem entregar todos os seus segredos, como se sua seiva rebrotasse a cada geração. Mesmo um livro superado, como "Raízes do Brasil", que tem valor mais histórico do que explicativo, contém sugestões que fazem pensar. E ali se acha a ideia de que "nossa revolução" seria lenta.

O tema é esboçado no último capítulo do livro, quando o autor deixa de lado os escrúpulos de pesquisador meticuloso para abandonar-se ao voo livre da especulação. É o capítulo mais falho, pelo que contém de amadorismo, e também o mais ambicioso em alcance e fantasia. A revolução de que fala o historiador é a da universalização de direitos e da modernização capitalista. Induzida pela urbanização, caberia a ela superar o passado colonial escravocrata.

Todo o raciocínio que embasa o livro segue de perto o esquema do sociólogo alemão Max Weber, que introduziu o conceito de patrimonialismo para caracterizar, nas sociedades agrárias pré-capitalistas, a usurpação de recursos públicos por interesses particulares e o consequente predomínio, na esfera político-jurídica, de relações privadas de dependência e mando. A célebre "cordialidade" nada mais seria que a versão brasileira desse estágio.

Sob influência de outro sociólogo, Georg Simmel, que ele teria estudado no período em que viveu na Alemanha (1929-30), Sérgio Buarque atribui à urbanização o poder de dissolver os alicerces da velha ordem, abrindo caminho à sua substituição pela democracia impessoal de molde burguês. Esse é, entretanto, "um processo demorado, que vem durando pelo menos há três quartos de século".

Raízes do Brasil
Sérgio Buarque de Holanda
l
Comprar

Trata-se de uma "revolução lenta", cuja forma visível "não será, talvez, a das convulsões catastróficas", mas que nos mantém em suspenso "entre dois mundos, um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz". Embora as causas da lentidão não sejam explicitadas, fica sugerido que tenham a ver com o legado desmobilizador da escravidão e, talvez, com a permeabilidade à ascensão individual numa sociedade muito plástica, o que esvaziaria pressões coletivas.

O assunto não é apenas acadêmico; a operação judicial batizada de Lava Jato, por exemplo, representa um pequeno passo nesse percurso. Parece incrível que siga pendente essa revolução em câmera lenta, atravancada por delongas e contramarchas. Tem sido a contrapartida da ausência de uma verdadeira revolução, que nunca prescinde de uma autêntica guerra civil, com seus massacres em massa e traumas que mutilam gerações.


Endereço da página:

Links no texto: