Folha de S. Paulo


O mito Tiradentes e o homem Joaquim

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Cena do filme 'Joaquim', de Marcelo Gomes, que está na programação do Festival de Berlim 2017
Cena do filme 'Joaquim', de Marcelo Gomes, que está na programação do Festival de Berlim 2017

Não existe história mais recoberta de ferrugem verde-amarela, depositada em tantas décadas de reiteração escolar e oficial, que a de Tiradentes. O frescor acre que exala de "Joaquim", exibido na semana passada no Festival de Berlim, decerto tem a ver com a opção do diretor Marcelo Gomes, já sugerida no título, de focalizar a vida do herói nacional brasileiro nos anos que antecederam a Inconfidência Mineira (1789). Quando começa a acontecer o que aprendemos na escola, o filme termina.

O pouco que se sabe sobre o alferes consta dos autos da devassa, o inquérito instituído pela Coroa portuguesa para punir a conspiração frustrada, e do relato escrito pelo frei Raimundo de Penaforte, que assistiu os réus nos quase três anos em que estiveram presos no Rio e testemunhou a encenação na qual, horas após condenar 11 conspiradores à forca, a corte anunciou que a rainha comutara em degredo na África a pena de todos, menos um. Cenas assim ficarão para um futuro filme disposto a enfrentar a montanha de clichês.

Em seu livro sobre o personagem ("Tiradentes: O Corpo do Herói", Martins Fontes), a historiadora Maria Alice Milliet demonstra como sua mitologia foi elaborada pelo movimento republicano a partir da década de 1870. Os clássicos da historiografia do Império, Robert Southey e Francisco de Varnhagen, desprezavam a Inconfidência, que julgavam, com certo realismo, movimento inconsequente e prematuro, e tratavam sumariamente do alferes como uma espécie de maluco.

Menos separatista que o pernambucano frei Caneca, menos radical que os "alfaiates" da Conjuração Baiana (1798), Tiradentes provinha de um estrato social médio, composto por aqueles "homens livres na ordem escravocrata" que deram título ao famoso estudo de sociologia histórica de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Sua persona convinha, portanto, como protótipo do cidadão-patriota idealizado pelos intelectuais positivistas que criaram a simbologia do movimento.

E convinha por ainda outro motivo. Desde o relato de frei Raimundo, ganha corpo uma sutil associação entre Cristo e Tiradentes. Depois de negar participação no mal planejado levante, como fizeram os demais presos, "não se sabe se por extrema coragem ou ambição extrema, ele atraiu para si toda a culpa", nas palavras de Maria Alice Milliet. A iconografia republicana logo começa a retratar um Tiradentes sacrificial, de sudário e longas barbas. Na exclamação de um crítico monarquista do Segundo Reinado, "prenderam um patriota, executaram um frade!".

A identificação se explica não só pelas ressonâncias que é capaz de evocar na sensibilidade de um país católico mas também porque a moral cristã era vista, pelos positivistas, como esboço da fraternidade que apregoavam a título de postulado de sua própria religião, de cunho "científico" e professada em nome de toda a humanidade. Desde o pintor Pedro Américo, passando por artistas e poetas como Candido Portinari, Cecília Meireles e Renina Katz, Tiradentes sempre teria um quê de Cristo.

Nada mais distante disso que o enfoque de "Joaquim", que narra com realismo virtuosístico as decepções de um homem ambicioso, impulsivo, algo ingênuo ou estouvado, e como elas o conduzem a uma lenta mas impetuosa politização. Este e "Vazante", de Daniela Thomas, também apresentado em Berlim e que se passa no mesmo espaço-tempo das Minas na transição da Colônia para o Império, são filmes em que a câmera quase desaparece em proezas de evocação etnográfica.

Mas quando Joaquim se encontra, afinal, com os conspiradores, nas figuras abstratas do "poeta" e do "padre", o filme se congela ou se ritualiza e subitamente temos a sensação de estar de volta a "Os Inconfidentes" (Joaquim Pedro de Andrade, 1972), nobre exemplar de uma época discursiva e alegórica do cinema brasileiro. A ideia talvez fosse mostrar, pela artificialidade presunçosa, o quanto havia de inautêntico naquela elite e em sua rebelião, e por um momento ocorre ao espectador a pergunta injusta sobre o que evolui mais devagar: o Brasil, sua classe dominante ou seu cinema.

É perturbador constatar como a crítica implícita em "Os Inconfidentes" e na peça "Arena Conta Tiradentes"(1967), de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, é parecida com a dos historiadores conservadores do Império, para quem a Inconfidência era frivolidade de elite e delírio de um alferes. Alferes é subtenente; parte da fama de Tiradentes o associa à sombra dos militares sobre a política brasileira ao longo do século passado. Numa simbologia mais profunda, porém, ele representa o elo perdido entre um povo acusado de apatia e sua classe dirigente, acusada de incapaz.


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