Folha de S. Paulo


Quem impedirá o STF de se tornar um inimigo da Constituição?

Pedro Ladeira /Folhapress
Plenário do STF momentos antes do início da sessão. Foto: Pedro Ladeira /folhapress
Plenário do STF momentos antes do início da sessão. Foto: Pedro Ladeira /folhapress

Às cortes constitucionais incumbe guardar as constituições dos ataques que ocasionalmente recebam dos demais Poderes constituídos. No Brasil, essa função foi entregue ao Supremo. O dilema fundamental desse modelo é saber quem protegerá a Constituição quando os ataques vierem daqueles que têm por função protegê-la?

Não há como negar que estamos fechando 2017 com a Constituição sob forte ataque. Múltiplos são os seus inimigos. Em primeiro lugar os partidos políticos que, ao longo das últimas décadas, em conluio com diversos setores da economia, provocaram a corrosão da engrenagem democrática.

Com a usurpação da vontade popular enveredamos por um perigoso processo de desencantamento com a política. Ambiente propício a movimentos e lideranças que repudiam valores essenciais à democracia, protegidos pela Constituição, como a liberdade de expressão, o direito à não discriminação, à tolerância e mesmo direitos sociais básicos, indispensáveis num país marcado por abissal e persistente desigualdade.

Nesse contexto de erosão tanto das instituições de representação, como do tecido democrático, é exasperante que a instituição que tem por responsabilidade precípua a guarda da Constituição também esteja dando sinais de convulsão. Não apenas porque alguns membros do tribunal, como o ministro Gilmar Mendes, assumiram um comportamento despudoradamente político, como porque a corte, como tenho insistido, perdeu a colegialidade. Ao assumirem individualmente funções que constitucionalmente são do colegiado, os ministros agravam a crise de autoridade do Supremo e reduzem sua capacidade de contribuir para o desfecho da crise política.

A pergunta inevitável que todos aqueles que assistem perplexos a politização do Supremo estão se fazendo é como impedir que aqueles que deveriam guardar a Constituição se transformem em seus inimigos. Afinal, como vigiar os guardiões?

Antecipo que essa pergunta jamais encontrou uma resposta satisfatória no pensamento político. Para Platão tratava-se de uma pergunta descabida, o que se justifica dada a natureza idealizada de sua República.

Num mundo real, onde não somos governados por reis filósofos e nossos magistrados em muito se distanciam de qualquer idealização, a questão do controle sobre aqueles que dão a última palavra persiste.

O pensamento constitucional ofereceu, no ultimo século, duas alternativas ao dilema do controle dos guardiões. Para o maquiavélico jurista Carl Schmitt, a única solução era transferir a proteção última da Constituição ao chefe do Estado, pois só ele poderia legitimamente exercer esse poder em nome do povo. Hitler soube bem ler o conselho e o resultado desastroso todos conhecemos.

A segunda alternativa, oferecida por Hans Kelsen e, em grande medida, lapidada pelo constitucionalismo norte-americano ao longo de dois séculos, é o desenvolvimento de um conjunto de ferramentas de autocontenção, voltados a restringir a discricionariedade dos magistrados, que passam pelo rigor jurídico, distinção dos campos da política e do direito, apego ao primado da imparcialidade, respeito aos precedentes e finalmente colegialidade. Caso o Supremo não seja capaz de se autoconter, o que em nenhuma medida significa se omitir, e especialmente limitar alguns de seus membros, será tragado pela crise.


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