Folha de S. Paulo


Reforma trabalhista cria barreira para que a maioria tenha acesso à Justiça

Lula Marques - 5.mar.2008/Folhapress
Estátua da Justiça diante do Supremo Tribunal Federal, em Brasília
Estátua da Justiça diante do Supremo Tribunal Federal, em Brasília

A função fundamental do direito é estabilizar expectativas, de forma a permitir a cooperação social. Ao Judiciário cumpre sancionar aqueles que descumprem as suas obrigações, criando incentivos para que todos respeitem a lei. Daí o direito de acesso ao Judiciário, para que este possa sustar uma violação ou reparar uma lesão, ser um elemento essencial à realização do Estado de Direito.

Como acessar o Judiciário e sustentar um litígio têm um alto custo, em sociedades muito desiguais, como a brasileira, nem sempre a Justiça é um instrumento efetivo para a proteção dos direitos dos mais pobres. Para mitigar essa disparidade de forças, muitas democracias, entre as quais a brasileira, asseguram o direito à assistência judiciária e o acesso gratuito àqueles que comprovarem a insuficiência de recursos (artigo 5º, LXXIV, da Constituição).

A recente reforma da legislação trabalhista atropelou esse direito fundamental ao determinar que os reclamantes, mesmo aqueles que têm direito à Justiça gratuita, deverão arcar com honorários periciais e de sucumbência quando forem derrotados em seus pleitos. Dado que mais de 70% dos trabalhadores brasileiros recebem menos de dois salários mínimos, conforme o último censo do IBGE, a chamada reforma modernizadora criou um enorme obstáculo para que a maioria dos brasileiros consiga, de fato, acessar o Judiciário caso tenham um direito
de natureza trabalhista violado.

Como não é possível eliminar uma série de direitos trabalhistas, pois esses se encontram expressamente protegidos pelo texto da Constituição, o legislador se utilizou de um subterfúgio processual para dissuadir o trabalhador que queira buscar o Judiciário para fazer valer os seus direitos.

O argumento é que muitos trabalhadores e seus ambiciosos advogados abusam do direito de acessar a Justiça, propondo ações irrealistas, infundadas e mesmo contrárias as provas. O fato, porém, é que para esse mal já há remédio processual que penaliza a litigância de má fé e a litigância temerária. Basta a aplicação dessas sanções para que litigantes e eventuais advogados inescrupulosos possam ser punidos.

Ao estabelecer a responsabilidade do trabalhador pelo pagamento de honorários periciais e honorários do advogado do empregador quando a demanda se frustrar o legislador está, de fato, estabelecendo um forte obstáculo àquele que busca o Judiciário, mesmo quando houver um pleito legítimo. Ao deixar expresso que essa responsabilidade se aplica também ao beneficiário da Justiça gratuita, a nova legislação se transformou num verdadeiro mecanismo de coação ao trabalhador que necessite recorrer ao Judiciário.

Essa barreira, particularmente intransponivel para os mais pobres, afronta ainda o artigo 5o, XXXV, da Constituic'ao, pelo qual nenhuma lei podera excluir da "apreciac'ao do Poder Judiciário lesao ou ameaça a direito". Lembra o ato de Collor que, por intermedio de uma medida provisoria, buscou impedir as liminares e cautelares contra o bloqueio dos cruzados.

Ao Supremo e a cada juiz do trabalho caberá impor limites a essa medida espúria. Poucos discordam de que seja positivo modernizar a legislação trabalhista. Criar obstáculos ao acesso da maioria dos trabalhadores à Justiça, no entanto, é um simples ato de incivilidade legislativa.


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