Folha de S. Paulo


É passada a hora

A discussão sobre a descriminalização do aborto é uma das mais complexas no plano moral e até mesmo jurídico. Fazê-la no contexto de um surto de microcefalia torna tudo ainda mais difícil. O desespero de milhares de famílias, em especial de mães, não nos permite, no entanto, negligenciá-la.

Para evitar mal-entendido, gostaria de deixar claro qual o ponto de partida deste artigo: fetos portadores ou não portadores de microcefalia devem ser tratados de forma igual. A eventual deficiência não permite qualquer discriminação.

Assim, o debate sobre anencefalia, onde não há qualquer potencial de vida, não deve ser indevidamente invocado nesse momento.

Dito isso, vamos ao início. A Constituição de 1988 não confere caráter absoluto ao direito à vida. Também não define o grau de proteção que a vida intrauterina deve receber.

Esta tarefa foi delegada ao legislador, como salientou o ministro Carlos Ayres Britto, quando do julgamento das pesquisas feitas com células-troncos.

O legislador penal, levando em consideração o interesse do Estado em proteger a expectativa de vida do feto, proibiu o aborto.

Porém, não o fez de forma absoluta. Em caso de risco de vida da mãe ou de gravidez decorrente de estupro, autorizou o aborto, por entender que há outros valores que podem suplantar o próprio interesse do Estado em proteger a expectativa de vida do feto. O Supremo, por compreender que, no caso de anencefalia, não existe nenhuma expectativa de vida, entendeu não haver ilegalidade na prática do aborto.

O problema é que o regime de proibição criado pelo Código Penal em nada contribui para salvar vidas, seja a expectativa de vida dos fetos, seja a vida e a saúde das mães.

Tampouco respeita o direito constitucional ao planejamento familiar (artigo 226, parágrafo 7º).

Ao contrário: lança milhares de mulheres todos os anos em clínicas clandestinas, que só estão interessadas na prática do aborto.

O atual surto de microcefalia apenas potencializará situação já dramática, impondo uma pena adicional e indevida a mulheres que, por negligência dos poderes públicos, hoje se encontram em desespero.

A única contribuição que o direito pode oferecer neste momento é criar um ambiente menos hostil às mulheres, estabelecendo programas de apoio especial que favoreçam o maior bem-estar possível para as famílias e, especialmente, para as pessoas que vierem a nascer com microcefalia.

Para aquelas mulheres que decidirem, por motivos que só lhe dizem respeito, por não levar a cabo a gravidez, o Estado deve não apenas descriminalizar o aborto, como
realizá-lo em hospitais públicos.

Talvez não seja uma solução ótima; talvez solução não exista. O que não podemos é continuar insensíveis a uma situação devastadora, especialmente para as mulheres.

Juridicamente, o Supremo já deixou claro que o embrião e o feto não têm o mesmo grau de proteção constitucional daquele conferido à pessoa nascida com vida. Não significa que não devam ser protegidos.

A questão é: qual a melhor forma de fazê-lo, de forma compatível com os direitos das mulheres?

Certamente não é o direito penal. Já é passada a hora de o poder público e da sociedade brasileira encontrarem uma solução mais racional para a questão do aborto.


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