Folha de S. Paulo


Talvez 2016 não seja um ano perdido

É paradoxal que num momento tão pessimista, das perspectivas política e econômica, o país possa estar vivendo um significativo processo de transformação de um dos elementos mais profundos de sua cultura. Desde que nos dispusemos a refletir sobre nossa identidade, no início do século passado, ficou claro que nós, brasileiros, sempre tivemos uma enorme dificuldade em pautar nossas relações, bem como as nossas condutas, pela regra da lei.

Ao longo de séculos nos esmeramos na construção de uma sociabilidade barroca, pautada por privilégios, imunidades e impunidade, que têm como contrapartes necessárias a discriminação, o arbítrio ou a mera invisibilidade. Esse modelo de sociabilidade, no entanto, vem se exaurindo. No centro desse processo de mudança estão novas gerações que, em três décadas de democracia, têm aprendido a reivindicar seus direitos e exigir a responsabilização dos que descumprem a lei.

Embora uma boa parte de nossas lideranças políticas e empresariais não tenham percebido esse processo -daí se encontrarem enredadas em esquemas promíscuos que não parecem ter fim- alguns setores das agências de aplicação da lei não apenas captaram os novos ventos, como têm servido de catalisadores desse movimento de mudança.

Não se trata, evidentemente, de um processo linear. Se a condução do processo do mensalão e, agora, das operações Lava Jato, Zelotes e Catilinárias apontam para uma alteração de paradigma na aplicação do direito, as condições carcerárias, a violência policial, a lentidão e o arbítrio de diversos setores da justiça brasileira nos lembram que ainda há muito o que se fazer.

Os processos de desenvolvimento ocorrem muitas vezes de maneira desequilibrada, para tomar emprestado uma expressão do influente economista Albert Hirschman. Alguns setores avançam primeiro e com isso geram uma demanda pela modernização de outras esferas que com eles se relacionam. Nada garante, no entanto, que o avanço institucional que estamos assistindo não se demonstre apenas insular. Um espasmo de transformação, que logo será diluído pelo peso do atraso.

Nesse sentido os desafios das instituições jurídicas em 2016 serão enormes no campo da Justiça. Esses ruidosos processos passarão pelo filtro das instâncias superiores. Conter eventuais excessos, sem romper com o ciclo virtuoso de responsabilização dos que comprovadamente violaram a lei, será o mais difícil.

Também será um grande desafio persuadir os setores mais inertes do sistema de justiça que os espaços para a afronta ao direito, assim como a negligência na sua aplicação, ficaram mais apertados. Que devem se requalificar para a prestação de um serviço público mais efetivo, caso não queiram ser legados à irrelevância.

A expectativa otimista, porém, é que as esferas institucionais mais obsoletas não consigam resistir à pressão desse novo tempo e sejam paulatinamente influenciadas, induzidas ou mesmo constrangidas a também mudar suas práticas. Seja pelo contato com aqueles que já estão desestabilizando o sistema, seja por uma forte demanda da sociedade, que passou a contar com um novo padrão na aplicação do direito.

Se continuarmos avançando na consolidação do Estado de Direito, por mais pífio que seja o crescimento econômico e por mais constrangedora que seja a política, 2016 não terá sido um ano perdido.


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