Folha de S. Paulo


Correndo ao seu lado

Ana Clara é uma talentosa designer de 22 anos. Inteligência aguda, refinada ironia e alma de guerreira. Ano passado decidiu que iria fazer sua primeira viagem ao exterior. Dinheiro no bolso e um destino em mente. Embarcar, no entanto, exigiria a superação de muitos obstáculos.

Ana Clara veio ao mundo com uma patologia que lhe limita severamente os movimentos. Nas suas próprias palavras: "mexo somente alguns dedos da mão esquerda. Para locomoção diária, utilizo uma cadeira de rodas especialmente desenhada para que eu possa ser acomodada na posição horizontal... utilizo um ventilador mecânico conectado em uma traqueostomia".

Assim, transportá-la não é algo simples. Há custos e riscos adicionais. Das empresas brasileiras que voam regularmente para os Estados Unidos, apenas uma aceitou embarcá-la. Seria necessário, no entanto, adquirir nove passagens, para embarcar com sua maca, pagando tarifas cheias.

Ana Clara não se conformou com isso. As condições lhe pareceram abusivas e discriminatórias. De fato, constituíam um primeiro obstáculo quase intransponível à sua viagem. Recorreu, então, a uma série de autoridades.

A questão jurídica e moral que a realização do direito de Ana Clara nos coloca não é simples: quem deve arcar com os custos adicionais decorrentes de suas necessidades especiais? Afinal, seria justo que aquele que já tem o infortúnio da necessidade especial seja obrigado a assumir sozinho os custos para realizar seus direitos?

A resposta dada pelas autoridades às reivindicações apresentadas por Ana Clara, depois de longas idas e vindas, demonstra que estamos evoluindo no reconhecimento das pessoas com deficiência como sujeitos plenos de direitos.

Embora as empresas aéreas tenham a prerrogativa de estabelecer livremente o valor de seus serviços, não podem impor ônus desproporcional aos passageiros com necessidade de assistência especial (PNAE). No que tange aos assentos adicionais, só se pode cobrar "um valor igual ou inferior a 20% do valor do bilhete aéreo adquirido pelo PNAE".

No final da corrida surgiram ainda dois novos obstáculos ligados a questão do risco. Primeiro, implicou-se com o respirador. No último minuto exigiu-se a presença de um médico a bordo.

Ana Clara e seus pais não esmaeceram por um segundo sequer. Demonstraram que o aparelho não criava qualquer risco aos demais passageiros e contaram com o apoio de um de seus médicos durante toda a viagem. Em resumo, assumiram para si todo o risco.

A corrida de obstáculos vencida por Ana Clara nos ensina muito sobre como o direito de uma sociedade que se pretende justa deve se organizar; de como a premissa de que todos devam ser tratados com igual respeito e consideração exige o estabelecimento de esquemas públicos e privados de "solidarização".

Inspira mais, no entanto, pela incrível força existencial demonstrada por essa jovem mulher. Sua obsessão por levar uma vida plena, com leveza e muita gentileza. Sua coragem por desafiar paradigmas e correr riscos, com grande humor. Sua capacidade de inspirar pessoas e mobilizar instituições.

Não se tratava, apenas, de conseguir realizar um desejo pessoal, mas de abrir um caminho, onde pudesse encontrar outras pessoas dispostas a partilhar "seu sonho, sua loucura e dispostas a correr ao seu lado".
A todos, um bom ano.


Endereço da página: