Folha de S. Paulo


Estado Inconstitucional de Coisas

Nas últimas semanas o Supremo Tribunal Federal tem analisado diversas ações relacionadas com a situação dramática das prisões brasileiras. A mais ampla delas, proposta pelo PSOL, pede ao Supremo que reconheça um "estado inconstitucional de coisas" no sistema penitenciário, bem como determine uma série de medidas estruturais com o objetivo de sustar a sistemática violação de direitos em nossos cárceres.

Não se trata de um pedido simples. A questão que se coloca em litígios voltados a corrigir problemas estruturais é: até onde devem ir os juízes? De que maneira devem os tribunais responder àqueles que veem seus direitos frustrados por falta de uma política pública, seja na área da saúde, da educação ou mesmo prisional?

A resposta tradicional é que os juízes devem pouco ou nada fazer. Afinal, a implementação de políticas públicas é da competência do Executivo, com a concorrência do Legislativo. O Judiciário não disporia do conhecimento ou mesmo dos meios para fazê-lo.

Essa, porém, não mais é uma resposta válida. Isso porque políticas públicas são, no mais das vezes, instrumentos para a realização de direitos fundamentais. Se deficientes, afetam negativamente a realização desses direitos. E não resta qualquer dúvida de que a proteção dos direitos fundamentais é missão precípua do Judiciário .

Logo, é inevitável que, ao julgar litígios estruturais, o Judiciário seja obrigado a se imiscuir no desenho de políticas governamentais e até mesmo a se envolver na alocação de recursos públicos.

A questão, portanto, não é se, mas quando e como deve o Judiciário interferir nessas políticas? De que forma assegurar direitos, sem usurpar as atribuições dos representantes eleitos para conceber e levar a cabo políticas de governo?

Como bem salientou o ministro Lewandowski, ao analisar o recurso extraordinário voltado a impor ao Executivo a obrigação de realização de obras em presídio do Rio Grande do Sul, "aos juízes só é lícito intervir" quando a atuação ou omissão "das autoridades estatais coloque em risco, de maneira grave e iminente, os direitos dos jurisdicionados". Essa é a senha: quando direitos são violados, não há como o Judiciário deixar de intervir. Determinou, assim, a realização da obra.

Na ação proposta pelo PSOL a questão é bem mais complexa, não só porque diz respeito à crise sistêmica das prisões brasileiras, como também pelo fato de que múltiplos são os pedidos voltados a remediar esse "estado inconstitucional de coisas".

O julgamento ainda está em seu primeiro ato. Em sede de cautelar, o ministro Marco Aurélio, de forma contundente, destacou que o Supremo não pode abrir mão de seu papel de proteger o direito das minorias. O desafio agora é não apenas determinar medidas racionais que possam interromper a sistêmica violação de direitos, mas também estabelecer um mecanismo eficiente de acompanhamento para sua implementação. A chave parece estar na atuação do CNJ.

Dado o reconhecimento da gravidade da situação carcerária pelo Supremo, das ultrajantes violações ali cometidas, bem como das nefastas consequências para toda a sociedade de um sistema prisional que só aumenta o potencial ofensivo dos que passam pelas suas grades, temerário seria recuar.


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