Folha de S. Paulo


Litígio estrutural

O PSOL protocolou nesta semana uma ambiciosa ação judicial perante o Supremo Tribunal Federal.

Seu objetivo não é obter a declaração da inconstitucionalidade de uma lei ou de um ato jurídico específico. Sua meta é ver superada uma situação de sistemática afronta a preceitos fundamentais da Constituição, no âmbito do sistema carcerário brasileiro. Nas palavras de Daniel Sarmento, subscritor da ação, um verdadeiro "estado inconstitucional de coisas".

As acusações são graves.

A primeira delas é de superlotação. Conforme dados do próprio Ministério da Justiça, são mais de 560 mil presos para cerca de 350 mil vagas. Logo, há um deficit de mais de 200 mil vagas.

Outro problema é a quantidade desproporcional de presos provisórios; 41% da população carcerária é composta por pessoas aguardando julgamento, o que demonstra um limitado acesso à defesa, bem como uma falta de cuidado dos juízes na decretação dessas prisões.

Condições degradantes, insalubres e desumanas foram detectadas pela CPI do Sistema Prisional, pelo Subcomitê contra a Tortura da ONU e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Com isso também parece concordar a maioria dos ministros do Supremo. Basta analisar seus votos em inúmeros habeas corpus.

Poucos são os estabelecimentos que oferecem trabalho ou que separam presos em função de periculosidade ou primariedade. O mais comum é que os presos sejam separados em função de uma eventual afiliação às diversas facções criminosas. Nesse sentido, o sistema penitenciário parece ter se tornado uma espécie de sociedade de economia mista, onde o crime organizado é sócio majoritário.

Ações semelhantes foram propostas em países como Argentina, Colômbia, África do Sul –e para não dizerem que se trata de uma invenção terceiro-mundista–, Itália e Estados Unidos. Os resultados podem ser considerados razoavelmente positivos na "desestabilização" dessas práticas violadoras. Se o Judiciário não é capaz de resolvê-las, pode romper a inércia e colocar os demais Poderes para trabalhar.

Em 2011, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Brown versus Plata, determinou que o Estado da Califórnia liberasse 46 mil presos de menor periculosidade, após um litígio que tomou mais de duas décadas nos tribunais inferiores. Para a Suprema Corte, a manutenção desses presos num sistema superlotado e sem as devidas condições sanitárias configurava a imposição de "pena cruel e pouco usual", o que não é aceitável constitucionalmente.

O cuidado nesse tipo de litígio de natureza estrutural é não demandar ou esperar que o Judiciário substitua a administração, escolhendo as políticas a serem levadas a cabo pelo Executivo. Ele não foi eleito para fazer essas escolhas ou pode ser punido por fazê-las equivocadamente.

Isso não significa, no entanto, que o Judiciário possa se omitir de sua função de garantir direitos e exigir o estrito cumprimento da lei. Não se trata de "ativismo", mas de obrigação funcional.

O segredo parece estar na natureza da prestação jurisdicional. Em vez de sentenças peremptórias e terminativas, os tribunais devem estabelecer as condições impositivas para a construção de soluções, monitorá-las e, quando necessário, punir os recalcitrantes.


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