Folha de S. Paulo


Desencantamento

Temos vivido um perigoso processo de desencantamento com a política. Razões não faltam para esse mal-estar generalizado.

É evidente que todos assistem bestializados à dilapidação da principal joia da coroa. O que causa mais perplexidade, no entanto, é que o esquema de rapinagem, que aparentemente irrigou as burras de partidos e políticos, não tenha se sentido intimidado pela condenação de figuras importantes do governo, no caso do mensalão. Isso aponta para verdadeiro deboche das instituições de aplicação da lei.

Na caso da falta de água, a desolação não é menor. A crise de abastecimento denota não apenas a incompetência do governo em face das mudanças climáticas e da redução da disponibilidade de recursos hídricos, mas também uma falta de responsabilidade política em manter os cidadãos devidamente informados sobre a situação.

A lista poderia ser longa, incluindo as reiteradas tragédias na área de segurança, como a das três crianças mortas por balas perdidas numa mesma semana, no Rio de Janeiro, mas pouparei o leitor.

O fato é que nosso sistema político não tem demonstrado ser mais capaz de selecionar bons governantes. E, mesmo quando o faz, impõe limites quase intransponíveis para que consiga atender o interesse público. Reformas, portanto, são necessárias.

Os altíssimos custos de entrada no jogo político parecem afastar aqueles que não disponham de abundantes recursos e que não estejam associados a estruturados grupos de interesses.

Partidos e parlamentos, lembrando Max Weber, deveriam servir como celeiros de novas lideranças. Aqui, no entanto, têm servido, sobretudo, para coroar a astúcia de Renans, Cunhas e Kassabs.

Que incentivo têm esses políticos para reformar um sistema eleitoral e partidário que lhes tem gerado tantos benefícios? Daí por que propostas de reforma política, como a levada a cabo por Eduardo Cunha, como primeiro ato de sua gestão esta semana, devem ser recebidas com grande desconfiança e ceticismo.

Como aprendemos com Maquiavel, ninguém na política abre mão do seu próprio poder, exceto sob ameaça de perdê-lo por completo.

Sem uma consistente pressão das ruas e dos movimentos sociais, assim como a articulação das organizações da sociedade civil, que nos foram tão importantes na derrubada do regime militar e mesmo no impeachment de Collor, dificilmente conseguiremos qualquer avanço na qualificação das regras que organizam nossa desacreditada política.

O problema é que muitos desses movimentos e organizações encontram-se anestesiados por afinidades ideológicas ou mera dependência de recursos governamentais. As ruas, por sua vez, parecem ter sido interditadas pela violência de "black blocs" e policiais. Essa, porém, não é uma realidade imutável.

Se a atuação da mídia independente e de esferas revitalizadas do sistema de Justiça tem se demonstrado essencial para desestabilizar a incompetência, punir a corrupção e mesmo infundir valores republicanos no jogo político, não é suficiente para promover e superar nosso deficit representativo.

Resta saber se a insatisfação latente na sociedade poderá nos sacar da letargia pós-eleitoral. Deixar tudo nas mãos do juiz Moro não parece razoável. A democracia depende de participação para sobreviver.


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