Folha de S. Paulo


Direito, leitura e cinema

Juridicamente, 2014 não acaba na próxima semana. Ao menos no que diz respeito aos principais imbróglios legais que tiveram início este ano. Dessa maneira, não tomarei o tempo dos leitores com um pretenso balanço daquilo que só começou. Aproveitarei esta última coluna do ano para partilhar algumas dicas de boa leitura e bons filmes, relacionados ao direito e à justiça.

Em "O Melhor Tempo é o Presente", Nadine Gordimer, Premio Nobel em 1991, nos oferece uma narrativa caleidoscópica da constituição da sociedade sul-africana pós-segregação. Jabulile e Steve se encontraram na luta contra o regime. Ela negra. Ele branco. Viveram o amor em dupla clandestinidade: política e racial. Agora, buscam viver a normalidade inaugurada pela Constituição de 1991. Ele professor universitário. Ela advogada do Centro de Direitos Constitucionais.

A tensão entre as arraigadas estruturas sociais e as promessas de liberdade e igualdade acolhidas pela Constituição se impõem sobre a vida do casal. Quando chegam os filhos aumentam os dilemas. Onde morar? Escola pública ou privada? Pagar ou não a segurança privada (provavelmente composta por ex-torturadores)? Mais do que isso, são obrigados a conviver com a decepção de ver a degeneração de um partido que chegou ao poder pelas mãos de Nelson Mandela e agora se encontra dominado pela corrupção e a violência. Pelos olhos da jovem e idealista advogada é dilacerante enxergar a imensa dificuldade de se construir uma sociedade mais justa e íntegra.

Já Ian McEwan, sempre cotado para o próximo Nobel, nos convoca para uma viagem íntima com o direito, em "A Balada de Adam Henry". Fiona é uma juíza de família da High Court, em Londres. Seu marido, Jack, um sofisticado historiador. Igualmente sofisticados são o ambiente em que vivem e os diálogos que travam. De mundano, apenas a traição de Jack.

Nesse contexto, Fiona tem sob sua responsabilidade o destino e, literalmente, a vida de algumas crianças. O primeiro caso se refere a guarda e educação dos filhos, após a separação de um casal de judeus ultraortodoxos.

No segundo, Fiona deve decidir se um jovem que está a beira da morte deve ou não receber trans-fusão de sangue, a qual recusa, em função de suas convicções religiosas, ou de seus pais. O resultado é dramático.

Como no Brasil, a lei inglesa determina que os juízes decidam de acordo com melhor interesse da criança. Quais os limites da intervenção do direito sobre a cultura, a identidade, as lealdades e a própria vida das famílias? Em sociedades cada vez mais plurais, juízes de família são como neurocirurgiões sociais, atuando num mundo de equilíbrio muito delicado.

Quanto aos filmes, no curtíssimo espaço que resta, há dois imperdíveis, para quem se preocupa com o direito. "Relatos Selvagens", de Damián Szifrón e "Uma Longa Viagem", de Jonathan Teplitzky. O primeiro trata do esgarçamento das instituições e das relações intersubjetivas na Argentina. O segundo lida com a tortura em campos de prisioneiros da 2ª Guerra, assim como com a justiça, o arrependimento e a reconciliação.

Em todas essas obras a relação com os dilemas jurídicos que enfrentaremos em 2015 é impressionante. Espero que gostem!


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