Folha de S. Paulo


Reconhecer a verdade

"A tortura compromete a nossa capacidade de nos distinguirmos de nossos inimigos." A frase não é de um militante de esquerda ou de um filósofo iluminista, mas foi proferida esta semana pelo senador republicano John Mccain, que permaneceu preso e foi duramente torturado num campo de prisioneiros no Vietnã.

De fato, como justificar o exercício da força pelo Estado, mesmo contra aqueles que eventualmente neguem os valores da democracia e dos direitos humanos, quando esta não estiver sendo empregada nos estritos limites jurídicos que lhe conferem legitimidade?

Ao utilizar meios desumanos para extorquir confissões, punir ou simplesmente eliminar aqueles que enxergam como inimigos, os agentes do Estado descumprem a condição essencial que os habilita a exercer legitimamente a autoridade.

Para a vítima da tortura talvez não faça diferença se o atroz sofrimento lhe esteja sendo infligido por um agente do Estado ou por um membro de uma facção terrorista ou criminosa. Mas para o processo civilizatório, sim.

Daí a enorme relevância dos dois relatórios sobre a tortura e outras graves violações de direitos humanos publicados nesta semana.

No dia 9 de dezembro, o Comitê de Inteligência do Senado americano trouxe à luz um duro documento sobre a prática de tortura por agentes da CIA, após os ataques do 11 de Setembro.

Afogamentos, espancamentos e alimentação e hidratação anal fizeram parte do repertório da agência.

No dia 10 de dezembro, foi a vez da Comissão Nacional da Verdade apresentar as circunstâncias em que atos de barbárie foram praticados contra dissidentes brasileiros, que incluem pau de arara, choques elétricos, estupros, execuções extrajudiciais e desaparecimentos. Também publicou uma lista de agentes que eventualmente autorizaram ou praticaram esses atos.

Muitas têm sido as vozes críticas aos relatórios. O diretor da CIA aponta que, além de falhas na própria elaboração da investigação, o relatório do Senado não foi capaz de reconhecer a importância para a segurança nacional das informações obtidas a partir dessas "técnicas avançadas de interrogatório".

No Brasil, a reação das Forças Armadas, até o presente momento, tem sido o silêncio. Alguns indivíduos e setores mais abespinhados, no entanto, têm levantado críticas ao fato de que a comissão, além de expor os nomes de agentes do Estado envolvidos com a prática de crimes contra a humanidade, também propôs sua submissão à Justiça.

Os mais céticos, por sua vez, apontam que os resultados apresentados pelos dois relatórios seriam supérfluos, na medida em que não trazem grandes novidades. Boa parte das práticas e dos autores já era conhecida. Portanto, qual seria o propósito de remexer no passado, criar tanto desconforto, apenas para organizar informações que, em larga medida, já eram conhecidas?

Como se apontou, quando da apresentação do relatório "Nunca Más", preparado por Ernesto Sabato, sobre o caso argentino, há uma sutil, mas larga distância entre conhecer a verdade e obter o seu reconhecimento oficial. Sem que as Forças Armadas Brasileiras, ou qualquer outra agência, reconheçam as atrocidades praticadas por seus agentes e os responsabilizem, como confiar que se comprometem com a democracia e a Constituição?


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