Folha de S. Paulo


Relações pachorrentas

Ao que tudo indica, as relações entre os poderes da República serão pachorrentas nos próximos anos. Isso não é necessariamente ruim.

Afinal, para que serve um sistema de separação de poderes, senão para que a "ambição" de um poder contribua para fiscalizar e contrabalançar o poder do outro, como diria James Madison -e, com isso, eventualmente qualificar a decisão pública que sobre todos recairá?

O fato é que o sistema adotado em 1988 é altamente consensual, ou seja, exige a concorrência das diversas esferas de poder para que uma decisão possa impactar a vida dos cidadãos.

Se a tensão entre o Legislativo e o Executivo é esperada, não devemos desprezar os embates que deverão marcar as relações entre o Congresso e o Supremo. Isso porque o resultado das eleições legislativas determinou uma composição bem mais conservadora ao parlamento do que aquela adquirida pelo STF após quase duas décadas de nomeações realizadas por presidentes, por assim dizer, progressistas.

Não custa lembrar que, nos últimos anos, embora o tribunal tenha se tornado muito proeminente, ele sobretudo convalidou avanços feitos pelo próprio legislador, ao declarar a constitucionalidade do Estatuto do
Desarmamento, das ações afirmativas ou das pesquisas com células-tronco. Foi mais ativista, é verdade, ao estender aos casais do mesmo sexo o direito à união civil.

Dificilmente o Supremo conseguirá agir com a mesma desenvoltura frente a uma legislatura mais conservadora. Basta verificar a agenda do Congresso que agora se inaugura. Deve-se intensificar o debate sobre o
Estatuto do Nascituro, que busca interromper a flexibilização das hipóteses de aborto que vem sendo lentamente trilhada pelo Supremo.

No mesmo sentido, o Estatuto da Família pretende reverter a decisão do tribunal no caso da união civil entre pessoas do mesmo sexo. Há, ainda, outros temas quentes, como a reforma da lei de patentes, que visa ampliar a proteção da propriedade intelectual no campo dos medicamentos, o que pode impactar negativamente as políticas de saúde convalidadas pelo Supremo.

Isso sem falar numa forte agenda de enrijecimento do direito criminal e redução da idade penal, que há muito vem sendo promovida por setores ligados à segurança.

Do outro lado da Praça dos Três Poderes, aguardam julgamento inúmeras ações em que Supremo e Congresso também se verão às turras.

Na ADPF 4966, o Partido Social Cristão ataca resolução do Conselho Nacional de Justiça que regulamenta o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Na ADI 5115, a Confederação Nacional da Agricultura questiona a constitucionalidade de Portaria Interministerial que estabeleceu o cadastro de empregadores administrativamente condenados por manterem trabalhadores em condições análogas às de escravos. Por fim, na ADPF 320, o Ministério Público Federal demanda a anulação da Lei de Anistia, em face de decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Nesse contexto, o Supremo irá desempenhar de maneira mais intensa uma função contramajoritária.

Para não sucumbir à refrega, necessita urgentemente qualificar seu processo deliberativo e ampliar a consistência de seus julgados. As únicas armas do tribunal, é sempre bom lembrar, são a integridade e a coerência de seus argumentos.


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