Folha de S. Paulo


Piketty e o direito

Ao final da tarde, quando os grandes magazines franceses fecham as suas portas para milhares de consumidores das mais diversas partes do mundo, suas marquises passam a servir de abrigo a um grupo também cosmopolita, só que agora de mendigos e moradores de ruas.

A proximidade física com uma nova desigualdade ainda não naturalizada, como nas grandes cidades do hemisfério sul, pode estar potencializando o impacto do contundente e impressionantemente bem documentado "O Capital no Século 21", do economista francês Thomas Piketty.

Não ouso me aventurar nas tertúlias econômicas provocadas pelo livro. A obra de Piketty, no entanto, tem muito a dizer sobre a relação entre direito e desigualdade.

Para o autor o regime de propriedade e o sistema tributário, que o conforma, têm um papel determinante nos padrões de acumulação entre os diversos setores da economia. Ou seja, é o direito que, em grande medida, determina se a riqueza advirá mais do mérito e da engenhosidade ou decorrerá em maior grau do capital hereditariamente acumulado.

De acordo com Piketty o desenho adotado pelas instituições do capitalismo maduro tem gerado, necessariamente, maiores taxas de retorno para o capital do que de crescimento. A consequência é que a renda vai cada vez se concentrando mais. Dessa forma, a desigualdade não deve ser vista como um acidente de percurso decorrente da livre interação de agentes econômicos, mas sim como consequência de escolhas institucionalizadas juridicamente.

Mesmo a adoção de uma constituição generosa, como a brasileira, que estabelece vários mecanismos de redistribuição, por intermédio de direitos universais à educação, à saúde ou à assistência social, pode ser neutralizada por um sistema tributário altamente regressivo. Basta lembrar que cerca de 45% da renda das famílias brasileiras que ganham menos de 2 salários mínimos volta para o Estado por força de diversos tributos. Já para as famílias que recebem mais de 30 salários mínimos, esse valor gira em torno de 25% da renda. Em resumo, quanto menos se ganha mais se paga.

No Brasil, além da regressividade tributária, falta transparência fiscal, o que impediu ao próprio Piketty investigar as entranhas de nosso sistema de distribuição de riqueza.

Há também muitos outros mecanismos que favorecem a concentração da renda, como empréstimos com juros subsidiados para as empresas chamadas de campeãs nacionais, discricionariamente escolhidas pelo BNDES, associados a generosíssimas taxas de juros que remuneram o capital voltado a cobrir os gastos públicos. Estima-se que os gastos com tais juros sejam 10 vezes maiores do que os realizados com a Bolsa Família.

As consequências do aprofundamento da desigualdade são desastrosas por múltiplas razões. Conforme explica Piketty, um dos seus efeitos mais perversos é a maneira pela qual a desigualdade favorece a captura dos mecanismos de representação democráticos pelos interesses de uma minoria privilegiada, fazendo da cidadania um perigoso simulacro.

No mesmo sentido, poderíamos dizer que a erosão do tecido social, provocada pela profunda e persistente desigualdade, gera necessariamente uma forte distorção na capacidade do Estado em aplicar a lei de forma justa e imparcial, como a experiência brasileira tem reiteradamente demonstrado.


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