Folha de S. Paulo


Democracia incompleta

A concepção de democracia, tal como formulada por Rousseau, é composta por dois elementos fundamentais. O primeiro deles é a formação da vontade geral. Conceito quase místico, refere-se à necessidade de que a política seja capaz de produzir o bem comum e não simplesmente agregar interesses individuais daqueles que compõem a maioria. A segunda face da democracia é representada pela adoção da lei.

Somente a lei, com suas características de generalidade e abstração, seria um adequado veículo para expressar e assegurar a realização do bem comum. Isso porque, resultante da vontade geral, seria voluntariamente acatada pela imensa maioria. E aqueles que não a cumprissem voluntariamente seriam imparcialmente coagidos a obedecer a lei.

Quando há trinta anos fomos ao Anhangabaú exigir as eleições diretas, por mais ingênuos que fossemos, certamente não imaginávamos o surgimento de um regime democrático nos termos postos por Rousseau. Mas seria equivocado supor que não aspirássemos a um regime político capaz de produzir o bem comum e ao mesmo tempo implementar o governo das leis. Em resumo, aspirávamos pelo "Estado Democrático de Direito".

Nestes trinta anos a democracia real –não a idealizada– tem nos servido razoavelmente. Produzimos uma constituição, espécie de norte do bem comum, estabilizamos a economia, a competição partidária e, por fim, avanços foram feitos para que nossa sociedade se tornasse um pouco menos hierárquica e excludente.

No que se refere a nossa relação com a lei, no entanto, parece que o caminho tem sido bem mais truncado. Vou ficar aqui apenas com uma forma de desrespeito à lei, que me parece a mais grave (sem falar em Petrobras, Alstom, Vargas, etc.).

No ano passado o Brasil foi responsável por mais de 10% do total de homicídios praticados em todo o mundo. Foi o país com o maior número absoluto de homicídios no planeta. Nisto temos sido imbatíveis. Gente decapitada, arrastada ou simplesmente perfurada. Simplesmente não, pois nesta semana começaram a surgir vídeos de gente agonizante, circundada de coturnos e calças cinza.

Encaminhadas (nunca resolvidas) as questões da estabilidade econômica e das políticas sociais, pergunto se há questão mais premente a ser colocada para os postulantes à presidência do que o problema do respeito à lei, a começar pelos homicídios. Não me parece que esta seja uma obsessão bacharelesca, mas uma questão estruturante de nossa sociabilidade, sem a qual nosso projeto democrático permanecerá marcadamente incompleto. Sem que a lei seja tomada a sério, como razão prevalente para a determinação de nossas condutas, o que adianta produzi-las ou qualifica-las?

Nestes trinta anos todos os presidentes democraticamente eleitos buscaram esquivar-se de maiores responsabilidades em relação à segurança dos cidadãos. Convocar as Forças Armadas é mais uma confissão da omissão em responder democraticamente ao problema da segurança do que a responsabilidade em enfrentá-lo.

Talvez a Pascoa, quando se celebra a ideia de renascimento, seja uma boa ocasião para que cada um dos postulantes à presidência reflita sobre o que deva ser feito para evitar que mais de 200 mil homicídios provavelmente ocorram no decorrer de seus mandatos.


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