Folha de S. Paulo


Licença para matar?

A cena de uma mulher sendo arrastada por um carro de polícia pelas ruas do Rio de Janeiro é devastadora. Uma rápida pesquisa na internet, no entanto, permite detectar que casos de pessoas arrastadas são mais comuns do que possamos imaginar, especialmente de mães que, no momento do assalto, buscam livrar seus filhos das cadeirinhas a que estão atados. Essa é uma das faces mais perversas dos cerca de 1 milhão de homicídios dolosos perpetrados em nosso paraíso cordial nas últimas duas décadas.

O caso da servente Claudia Silva Ferreira, no entanto, é mais grave. Não apenas porque Claudia foi arrastada por uma viatura da Polícia Militar, mas porque os policiais envolvidos neste brutal episódio também se encontram enredados em muitas outras mortes de indivíduos a quem pretensamente prestaram socorro, após terem pretensamente resistido à prisão.

Para que o leitor tenha algum parâmetro sobre o uso da força letal pela polícia, a cidade com maior índice de morte pela polícia nos Estados Unidos, em 2011, foi Chicago. Das 46 pessoas alvejadas pela polícia, 10 vieram a óbito. Em Nova York, no mesmo ano, 16 pessoas foram baleadas pela polícia, sendo que 6 morreram. Na tragédia de Claudia, segundo dados da Polícia Civil do Rio de Janeiro, apenas 1 dos policiais envolvidos teve participação em 15 mortes, o que demonstra a absoluta leniência da corporação e da Justiça com policiais violentos. É evidente que estou comparando maçãs com bananas. Meu objetivo, porém, é sublinhar que apenas 1 policial carioca está envolvido em mais mortes do que toda a polícia de Chicago ou Nova York ao longo do ano de 2011.

Por mais que alguns setores da polícia brasileira tenham melhorado a sua eficiência e mesmo os seus padrões no uso da força letal, causa perplexidade o fato de que em mais de duas décadas de democracia não tenhamos sido capazes de promover uma efetiva modernização de nosso sistema de justiça criminal e, em especial, de nosso aparato policial.

Creio que a paralisia de nosso sistema político em promover as urgentes e necessárias reformas decorre de 4 obstáculos fundamentais. Em primeiro lugar, temos os arraigados interesses corporativos. Um segundo grupo de obstáculos está relacionado a interesses mais vis. A ineficiência policial gera um mercado milionário para empresas de segurança legais, muitas delas lideradas por policiais, bem como por iniciativas ilegais, como as milícias. Em terceiro lugar, é importante mencionar, que a falta de controles e de maior
transparência favorece a corrupção que irriga muitas campanhas eleitorais. Por fim, governadores são em algumas circunstâncias reféns das policias, especialmente em situações de crise.

Em homenagem a Claudia e Amarildo, bem como as quase 50 mil pessoas mortas todos os anos pelo crime no Brasil, entre as quais centenas de policiais que perderam suas vidas na luta contra o crime, é que os candidatos à presidência têm a obrigação moral e a responsabilidade política, de apresentar, e se eleitos, colocar em prática projetos que de fato dotem o país de um sistema de justiça criminal e segurança pública condizentes com os imperativos do estado democrático de direito estabelecidos pela Constituição.


Endereço da página: