Folha de S. Paulo


Direito para valer

Apesar das inúmeras evidências em sentido contrário, ousaria dizer que o ano de 2013 foi muito promissor para a consolidação do Estado de Direito no Brasil. Se por um lado a corrupção, a violência social e o arbítrio das autoridades, que ocuparam as manchetes diárias, confirmam o nosso padrão secular de desdém em relação à lei, dois eventos da máxima importância parecem apontar uma silenciosa revolução na cultura política brasileira.

Se o povo acompanhou bestializado o processo de instalação da República em 1891, em 2013, quem parece ter acompanhado as revoltas de junho com imensa surpresa e apatia foi o nosso andar de cima, especialmente a classe política. Como se o tempo e o poder de dizer houvessem sido simultaneamente sequestrados por aqueles jovens.

Essas revoltas não podem ser interpretadas como um mero fenômeno da natureza, uma espécie de tsunami social, que surge e desaparece.

Revoltas ocorrem, sobretudo, quando há uma forte discrepância entre os padrões de justiça incorporados em uma sociedade e a frustração desses padrões experimentada pelas pessoas no seu cotidiano. Revoltas ocorrem quando os canais de transmissão da vontade política se demonstram corrompidos e a única forma de exigir é ocupando a esfera pública.

A revolta contra o transporte caótico, a cidade excludente, a educação de baixíssima qualidade, a polícia arbitrária e os partidos políticos corruptos vieram exatamente de jovens que ao longo dos últimos anos incorporaram às suas identidades a noção de que são sujeitos de direito. Isso significa que exigem ser tratados com igual respeito e consideração, nas diversas esferas da vida.

Esta noção de que os direitos geram expectativas e obrigações a serem cumpridas é algo indispensável às sociedades que decidem se reger pelo direito. E isso sempre nos faltou. É como se apenas 25 anos depois de estabelecidos pela Constituição, esses direitos passassem a ser incorporados pela maioria da população, como autenticamente seus.

O segundo evento de máxima importância para a consolidação de nosso frágil Estado de Direito foi certamente o início da execução das sentenças proferidas no julgamento do mensalão.

Contra todas as expectativas consolidadas ao longo de séculos de impunidade em relação aos poderosos e abonados, a lei parece ter começado a ser aplicada de maneira igual para todos. No início muitos achavam que não haveria julgamento. Houve. Que o julgamento não condenaria ninguém. Condenou. Que os chefes seriam poupados. Não foram. Que ninguém seria punido. As punições começaram.

Num país onde há uma enorme desconfiança na capacidade da Justiça de aplicar a lei de forma imparcial, reiteradamente apurada pelas inúmeras pesquisas de opinião, ou em qualquer conversa de botequim, a frustração das expectativas negativas desestabilizou a percepção de que aqui cadeia é só para pobre. O choque foi tão grande que o próprio ministro da Justiça, ao olhar para a prisão, se surpreendeu com seu estado medieval. Aí é que serão trancafiados, ex-ministros, banqueiros, ex-deputados?

É um privilégio e uma enorme responsabilidade suceder a Walter Ceneviva, jurista que sempre militou pelo Estado de Direito, nesta coluna.

oscar.vilhena@fgv.br


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