Folha de S. Paulo


Caetano e Gil

Escrevo este artigo ainda sob o impacto do antológico show de Caetano e Gil. Chego ao teatro morto, com o corpo doído e tenso, como ele costuma chegar todas as sextas-feiras após cinco dias lidando com a crise. Meu cadáver se senta, a luz se apaga, e fico naquele escuro do Brasil e dos meus problemas.

Mas aí entram eles, dois jovens de mais de 70 anos, para apresentar uma obra de 50 anos feita à mão.

A cada canção, um órgão do meu corpo ressuscita. Os pelos do braço morto dão sinais de vida e se arrepiam, o coração volta a bater, o peito se enche de orgulho e destrava as costas cheias de Dorflex. Os dois ali sozinhos são uma orquestra, um coral e um corpo de baile. São tudo.

Falam pouco, dizem tudo. Conversam com a gente o tempo todo, com gestos, olhares, teatro, dança. E com o silêncio.

Estamos diante de uma brasiliana, uma biblioteca musical imensa. Dois patrimônios da humanidade intombáveis, que chegaram aclamados aqui hoje, mas que foram perseguidos, exilados, caçados e cassados por todo tipo de preconceito, burrice e caretice. Duas criaturas femininas, mas dois lutadores de UFC na hora de brigar pelo que acreditam.

Música por música, desfiam nossa história, minha história, a trajetória de cada um na plateia, tornando os velhos mais jovens e os tantos jovens presentes mais sábios. Uma transfusão de sangue em massa. Dois setentões em plena forma a nos dar sangue novo. Isso é o nosso país.

O Brasil é o improvável, é a realização contínua do impossível, para o bem e para o mal.

Neste momento em que o Brasil está tão mal lá fora e com a autoestima nos joelhos, esses dois exportadores acabam de dar volta ao mundo mostrando que o Brasil não pode ser entendido com os olhos. O Brasil só pode ser visto pelos ouvidos.

Para ver o Brasil, é preciso fechar os olhos e senti-lo. Quem olha para o Brasil com os olhos não vê o Brasil, só vê pobreza. E ali no palco estão duas riquezas do Brasil.

Somos um país de muitas riquezas naturais —Caetano e Gil são duas delas. Mas o Brasil é rico ainda mais em riquezas sobrenaturais. Coisas que não tinham a menor chance de acontecerem aqui e que acontecem aos borbotões.

É surpreendente que o mulato Machado de Assis tenha escrito no século 19 uma obra imensa, vanguardista e revolucionária, um tesouro escondido em português. É surpreendente que tenhamos uma agricultura tão inovadora ou que o 3G, igualmente nascido aqui, exporte gestão para o mundo do país do jeitinho e da desorganização.

Parece que, a cada catástrofe natural que criamos com nossas próprias mãos, Deus nos compensa com milagres brasileiros, e é isso o que acontece diante dos meus olhos já vascularizados por um mar de lágrimas. Choro eu, choram as pessoas ao meu lado, chora Gil no palco.

Emocionada, a nação que chegou ali de joelhos se levanta. Finalmente vivo e ressuscitado, eu fecho meus olhos em transe e, de olhos fechados, vejo uma grande nação que não teremos competência de destruir, apesar de todos os desaforos que essa pátria já aguentou em sua história.

Como a caretice também não foi capaz de destruir a obra dos dois cavalheiros ali no palco, que, se ingleses fossem, já seriam Sir Caetano Veloso e Sir Gilberto Gil. Como são baianos, vão virar Orixás, para, de onde estiverem, nos iluminarem com suas músicas.

Precisaremos deles para acreditarmos e lembrarmos sempre da grandeza do Brasil.


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