Folha de S. Paulo


MPB na veia

Quando eu estou desanimado com o Brasil, eu escuto música popular. Música popular brasileira me mostra o Brasil pelas lentes de João Gilberto, Tom Jobim e Caymmi.

Nela, o Brasil é sempre grande, imenso, global. Nunca se corrompe ou se apequena. O Brasil da MPB é irredutível nos seus princípios, como Maria Bethânia e Roberto Carlos.

Caetano e Gil são aquelas duas pedras do morro dos Dois Irmãos, no Rio, duas grandezas sólidas, unidas, a embevecer o mundo.

O Brasil da realidade tece de dia e destece de noite, como a Penélope da "Odisseia".

A produção industrial da MPB produz de Chiquinha Gonzaga até hoje, sem parar, biscoitos finos para as massas.

A MPB é intelectual e popular. Ela é brega e linda.

Vem dela a paixão que o gênio da fotografia Mario Testino tem por Alcione.

Vem dela a admiração que Bill Clinton tem por João Gilberto: "I love your father", ouvi o ex-presidente dizer a Bebel Gilberto em um evento.

Os seres humanos desceram em Marte com o robô tocando "Ô Coisinha Tão Bonitinha do Pai", música do Brasil.

Entretanto, como disse Caetano, somos cegos de tanto vê-la, ou melhor, surdos de tanto ouvi-la. Às vezes perdemos a dimensão de sua grandeza.

A MPB é minha regra e meu compasso. Eu sou do Brasil e dela. Grande, forte, ouvido pelo mundo.

Um Brasil que não se apequena nem quando é do tamanho de Nelson Ned, o cantor preferido de Gabriel García Márquez.

Amo a música sertaneja porque ela afirma uma parte tão guerreira e produtiva do Brasil. Um Brasil da agricultura, um Brasil que não tem dúvida. E que produz para o mundo comer com sua certeza de Bruno & Marrone.

Quanto mais as notícias dos jornais e telejornais pioram, mais Roberto Carlos canta na minha vitrola.

Se o Brasil presidencialista sempre foi cheio de problemas, o Brasil monárquico do rei Roberto Carlos é só alegria.

Música popular engrandece a alma e alimenta, diz funcionário lá de casa que me vê ouvir "Jerusalém de Ouro" cantada por Roberto Carlos dez vezes sem parar numa manhã. Uma música que nos une diante de sua grandeza.

A política desune, a música popular une. A realidade social nos envergonha. O samba transforma os pobres em duques e princesas na avenida do samba. E dá dignidade e autoestima aos negros tripudiados da Bahia no Ilê e no Olodum.

Lamento que os governantes do Brasil não compreendam historicamente a grandeza dessa indústria para incentivá-la e protegê-la de coisas ridículas como a meia-entrada, que avilta o mercado de shows dos artistas.

A MPB vende o Brasil. Educa as crianças e os adolescentes. E é cálcio para um homem de meia-idade como eu, cujo esqueleto às vezes verga com o PIB nanico e com coisas nanicas que o Brasil produz ao longo da história.

No escuro da ditadura, Chico Buarque acendeu uma luz e nos lembrou que ela ia passar. E foram os afeminados, os maconheiros, os malucos e os bipolares da MPB que peitaram a ditadura enquanto tantos machões das elites fechavam a boca e compactuavam com ela.

Mas a coisa mais linda da MPB é o amor, o orgulho e o respeito que ela tem por si mesma.

Caetano, Roberto Carlos e eu produzimos um show em que os dois cantavam juntos. Depois da estreia, Caetano deu uma festa em seu apartamento. Estava lá metade da MPB e da Globo. Era um céu de estrelas e um chão de esmeraldas. Mas tudo parou quando Roberto Carlos chegou. Não se discute, é o Rei. E o amor que Caetano tem por ele e o orgulho com que Caetano pega sua funcionária Zefinha para juntos tirarem uma foto com o Rei me enchem de certezas sobre este país de Heitor Villa-Lobos.

A MPB é a minha massagem, o meu pilates. A MPB alonga a alma que o dia a dia apequena. Movido por ela, ando de queixo erguido, minha cabeça não verga. Porque ela me lembra que sou de um grande país, como as pedras da Gávea, o rio Amazonas, a baía da Guanabara e a música popular.

Em 2015, MPB na veia. Feliz Natal.


Endereço da página: