Folha de S. Paulo


Somos o que buscamos

Na semana passada, milhares de americanos saíram às ruas para protestar contra os novos programas de espionagem dos Estados Unidos que exploram as imensas pegadas digitais da vida privada no século 21.
As pesquisas de opinião apontam que a população americana está dividida sobre o tema. Surpreendentemente, ou não, grande parte apoia o uso desses expedientes invasivos dentro do pressuposto de que a intrusão aumenta a segurança pessoal e nacional.

Essa é uma discussão antiga, sobre os limites do público e do privado, mas que ganhou muito mais urgência e abrangência na era da comunicação total, que é também a era da exposição total. E não só na área política ou policial mas também na esfera econômica.

Nossos comportamentos estão cada vez mais intermediados por softwares, aplicativos, transações eletrônicas. O cidadão digital está nu. O Google sabe muito mais das pessoas do que muito dos seus amigos e parentes mais próximos.

Nós somos o que buscamos.

Por isso, como protegemos (e também como usamos) essas informações é uma das grandes novas discussões do nosso tempo e do futuro.
Por enquanto, é um universo em formação, horas depois do Big Bang da internet, que juntou o mundo todo e todo mundo em relações recém-nascidas ou ainda em gestação.

Ninguém, ou quase ninguém, lê aqueles longos contratos eletrônicos que aparecem na telinha ao ligar aparelhos novos e abrir contas em redes sociais e sites de busca. Mas é ali que você, mais inconsciente do que conscientemente, concede enorme liberdade às empresas de serviços para não só armazenar dados preciosos a seu respeito como também processá-los e vendê-los a preço de ouro para os mais diversos interessados no que você faz, consome, lê, pesquisa, diz, frequenta, pensa, deseja...

E, se empresas, pesquisadores, publicitários e políticos têm apetite enorme por informações sobre os hábitos das pessoas, as pessoas mostram desejo enorme de expô-los a amigos, conhecidos ou até mesmo a quem apenas mostre algum interesse.

Vivemos o grande momento exibicionista da humanidade. As pessoas agora tiram fotos como loucas não mais para registrar o que estão vivendo, mas para exibir o que estão vendo.

Ninguém é senhor de sua própria história, mas todos hoje podem ser autores de sua própria estória. Somos todos editores.

As redes sociais exibem versões editadas das vidas das pessoas muitas vezes mais falsas do que aqueles filmes de Hollywood dos anos 1950/1960 com Doris Day e Rock Hudson bancando a tradicional família classe média americana feliz.

Mas, se a vida como ela não é das mídias sociais pode ser enganadora, os registros que os softwares fazem de cada palavra digitada e de cada lugar visitado são totalmente reais. Com essas informações é possível criar e oferecer produtos e serviços de forma muito mais precisa e eficiente a públicos que já demonstraram interesse por seu produto ou sua mensagem.

Isso não é necessariamente ruim para o público-alvo. Nem necessariamente bom. O potencial certamente é enorme. A capacidade mais transformadora é a de armaze-
nar e processar dados. O software mais brilhante já inventado, o que roda no cérebro humano, funciona assim.

O escritor inglês George Orwell, ao escrever "1984" nos deprimentes anos 1940, previu um futuro no qual o Big Brother visse e controlasse tudo de forma autoritária.

Tudo de fato já está sendo visto, registrado, armazenado e processado pelas novas tecnologias. Mas, diante dessa avalanche sufocante de dados e fatos, ainda falta clareza sobre o controle de tudo isso, que é em boa medida o controle sobre todos nós.

Apesar de todos os esquemas de espionagem e malandragem eletrônicas, não resta dúvida de que a revolução digital deu poder aos indivíduos, que hoje conseguem se organizar e se manifestar com muito mais eficiência.

É um mundo novo que surge. Um mundo que deve expandir os limites da humanidade, mas sem romper os limites e os direitos dos humanos.


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