Folha de S. Paulo


Cada uma na sua vasilha

Leonardo Soares/Folhapress
COMIDA PANELA WOK - SAO PAULO, SP, BRASIL, 18/02/2014 - Pauta sobre as panelas wok. Seabass with champignons (FOTO: Leonardo Soares/Folhapress,- FSP-COMIDA) ***EXCLUSIVO FOLHA****

Quando grupos começam a se dar muita importância em qualquer ramo do conhecimento, o leigo se amedronta. Sente que é perigoso que passem a usar o jargão científico para se fazerem mais complicados e ininteligíveis. Senti isso no outro dia mesmo com a chegada da filósofa Judith Butler ao aeroporto, a mais densa e incompreensível das criaturas, sendo apupada e quase apanhando de uma mulherada insana que nunca a leu nem a lerá. Que não sabe quem é ela, o que diz e o que quer.

Judith Butler ganhou no ano passado a medalha de pior escritora no seu campo, uma perguntadeira com as respostas sempre em andamento, mutantes, ambíguas, coisa de dar dor de cabeça depois da leitura de três páginas.

O que moveria aquelas senhoras que queriam bater nela? Por que não conversar? Quem as terá insuflado?

E daí me dá medo que na nossa humilde cozinha possa um dia baixar esse vento de incompreensão ou de politicagem quando o que queremos é só um bom bife com batatas.

E sabe do que sinto falta? Daqueles restaurantes chineses onde você chegava e o garçom não vinha correndo contar que se chamava Pier Paolo e estava às suas ordens, entregava o menu e encetava um papo-cabeça. Afinal, a família já sabia que eram cinco escolhas e vinham todas juntas, cada uma na sua vasilha, mas ao mesmo tempo. O frango com amendoim, o porco com abacaxi, a carne com legumes salteados, os pãezinhos no vapor. E muito arroz.

O chef já tinha tudo picado, a wok é poderosa, salteia tudo naquele fogo fortíssimo e rápido, come-se dividindo de tudo um pouco até o final do biscoitinho com a mensagem impossível.

Havia uns outros restaurantes chineses que chegavam debaixo de uma ponte ou nos arredores do Ceasa quando uns camarões enormes e apimentados ou lâminas finas de carne fazendo um caldo que te deixava saudoso por decênios. Sumiam. Desfaziam-se no ar, não deixavam discípulos, não plantavam hortas, não ficava uma única salsinha de lembrança.

Alguém se lembra do nome de um chef chinês que executava invariavelmente o frango com amendoim, o porco com abacaxi, o filé com ervilhas tortas e o camarão empanado?

Alguém se esqueceu do gosto do molho vermelho que acompanhava o camarão? Doce-azedo. Claro, havia sempre o arroz, às vezes com ovo mexido, pimentão e cebolinha. O menu era numerado até cem, mas infalivelmente os pratos pedidos eram aqueles. E tinha-se um pequeno leque de escolhas na sobremesa, era banana ou maçã empanada, e se não gostasse de um dos dois a solução era tomar um sorvete na rua do lado. O máximo de amizade que se podia ter era com o gato de porcelana de olhos enormes, na entrada, embaixo da lanterna chinesa. Um ou outro dragão. E quem não sabia usar pauzinhos comia com garfo.

De vez em quando o espetáculo exótico e lindo de um rapazinho estendendo a massa do macarrão nas mãos e multiplicando os fios em progressão geométrica.

Havia sempre uma mesa com cara de família do dono e outra de chineses de negócios que comiam ossos, cartilagens e gelatinas que ninguém nos oferecia. E quase todos se chamavam Wu.

Anônimos, propositadamente anônimos. Toda a comida posta sobre a mesa, sumiam para algum canto escondido até a hora em que um sinal era feito no ar e pegavam todos os pratos com uma das mãos, limpavam a mesa com a outra e ainda entregavam a conta. Não tinham muito tempo de aprender a língua para conversar com o cliente, o serviço era pesado e eficiente e ainda não existia bok choy.

Havia também, longe dos restaurantes, as casas particulares onde serviam-se banquetes. Havia primeiro uma parte de comida fria, um pato (o de Pequim era o motivo da refeição, dentro de uma panqueca) e algum tipo de lula e chinesas de pés pequenos andando baixinho.

Era um mundo em que se fazia força para não aparecer e para ser esquecido o mais depressa possível. Contanto que o cliente voltasse e pagasse. Era o bastante.

De vez em quando ainda faço em casa um frango com amendoim e sinto uma paz de criança dormindo.


Endereço da página: