Folha de S. Paulo


Viva aquela linda flor roxa

Claudio Gonçalves/Folhapress
TOLEDO, PR, BRASIL, 12.05.2017 - Alcachofra na área das bancas de hortifruti. Vista interna de supermercado e seus produtos no município de Toledo (PR) (Foto: Claudio Gonçalves/Folhapress)

Cerqueira César era um bairro novo, uma prolongação dos Jardins. A rua Peixoto Gomide começava na Estados Unidos e acho que ia até a Paulista, pelo menos me levavam ao parque Trianon em linha reta, se bem me lembro. E os vizinhos se conheciam. E cada um viera de um canto do mundo, tinha de tudo, principalmente europeus. Deixa eu pensar por ordem das casas mais próximas: brasileiro-paulista, brasileiro do interior, brasileiro de Minas, brasileiro de São Paulo, italiano, polonês, alemão, inglês, italiano, português, e ia por aí. Nenhum oriental.

Predominância de portugueses e judeus. Todos falando português direitinho, não me lembro de árabes, que iria encontrar no colégio. Uma criançada que andava de bicicleta na calçada e que crescia junto.

As comidas dessa gente toda sempre me fascinaram. Carpas no tanque, docinhos de tomate. (Seriam de tomate mesmo, ou apenas o nome? Hoje imagino damasco.) Tudo era bem-vindo, experimentado, sem esquecer que éramos todos vizinhos de pequenas chácaras com caquis-chocolate duros, couves frescas e o belíssimo Santa Luzia, ele sim, adivinhando os desejos daquela ONU desgarrada.

Como era amiga de Nelly Beliski, vivia na cozinha de dona Hermínia, a mãe, que cozinhava com enorme prática, limpíssima, os ingredientes separados de antemão, um jeito de pegar as coisas cuidadoso e comidas que eu jamais havia visto, como a alcachofra.

A alcachofra achei de bom tom contar para a minha mãe, afinal, era quase um segredo e me impressionou muitíssimo. E me impressiona até hoje, sempre me vem à cabeça o primeiro homem agachado num canto, como um caipira com seu pito, descobrindo aquela flor, aquele cardo, aquela coisa. Não tinha cheiro, as folhas espetavam, um pouco duras, foi desfolhando, deu com todos aqueles fiapos, teimou, arrancou... Gente, que paciência, que fome, que criatividade. Ou terá sido a Eva, impressionada com a beleza da flor, arrancando as folhas um por uma, ele me ama, não ama, ama, não ama.

Não sei. E devem ter começado por grelhar a coisa, depois cozinharam amarradas dentro do couro de um bicho, ah, nem me interessa porque até a receita de dona Hermínia eu esqueci, mas quase posso jurar que ela depois de limpar, lavar, recheava entre as folhas com farinha de rosca bem temperadinha, com alho, salsa e punha na panela com água e azeite cobrindo a alcachofra. Quando a água secava começava a fritura, dois métodos em um, na mesma panela. Será? Só sei que não era encharcada de gordura e o sonho maior era comer aquelas folhinhas com a farofa de dentro.

Tenho certeza que foi por isso que anos mais tarde no bufê, inventei o coração da alcachofras com uma farofinha de farinha de mandioca mesmo, e que era o maior sucesso.

Não me conformo com o desprezo das folhas para se comer somente o coração. Não, por favor, as folhas mergulhadas no seu molho preferido, acho que lá em casa era na manteiga derretida com salsinha, são o que há de bom e o maior barato. E nem são necessárias todas as frescuras inventadas depois daquele Adão e daquela Eva. Até a palha, a penugem, você pode tirar na mesa, na hora que come.

Se não souber lidar com a alcachofra, jogue inteira na água e deixe cozinhar até que ao puxar uma folhinha ela se solte com facilidade. Só. Vai dar certo. O resto aprende depois. Mas atenção, procure no Google e há umas cinco americanas fanhosas, cada uma com um jeito melhor de preparar a alcachofra para qualquer tipo de cozimento. Não sei se me admiro mais com a descoberta da alcachofra ou com a do Google, ele é demais.

E depois vida afora, um cozinhou, outro pôs no vapor, outro fritou, outro comeu crua em fatias fininhas... e viva aquela linda flor roxa, fruto da curiosidade e da gula.


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