Folha de S. Paulo


O bicho que manda

Marcelo Justo - 11.mai.2012/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 11-05-2012, 18h00: Produção com ovos. Ovo de codorna, ovo de galinha caipira. (Foto: Marcelo Justo/Folhapress, COMIDA) ***EXCLUSIVO ***

Não entendo de bichos, nem sei o nome deles. Me incomodam os sapos e insetos e morcegos que não sabem seu lugar e se enfiam casas adentro sem desconfiômetro.

Dessa vez, aqui de São Paulo, pedi ovos caipiras ao Alexandre —e bastante. Para comer e enfeitar a mesa, nada tão bonito quanto um ovo. Alexandre é de uma educação jamais vista, senti um certo gaguejar, percebi que alguma coisa não ia bem. "Sabe, dona Nina, as galinhas de cinquenta passaram a nove, são aqueles bichos que a gente não pode matar, ficam aí no mato, e é piscar o olho e atacam os animais de comer." É para se ter fome, mas não se pode desembainhar a faca, não se pode.

Já lá no sítio, vi, olho no olho, o medo que ele tem de contar que alguém jogou uma árvore no chão, que cortou um galho da goiabeira, que matou um cachorro do mato. "Dona Nina, não conto nada, se contar sou cúmplice", e revirava os olhos de medo de ser preso. Só no bananal largado, redondo, plácido é que se toca sem medo.

Desde que comecei a ir a Paraty, me comovi com a mudança de comportamento para com os animais, o respeito conseguido, as proibições obedecidas, o esforço das mestras, um certo descontentamento dos mais velhos, bem mais velhos. E dos que sabiam caçar, horas e horas à
espreita, no muito escuro da noite, silenciosos como peixes, mudos como o Zé Capenga.

O tempo foi passando e comecei a me irritar um pouco, tanto aqui como lá, com as crianças que cortam uma haste e pedem desculpas à flor, os pescadores que pescam os peixes e os beijam na boca antes de soltá-los de novo, os turistas que olham com asco os pescadores, mas
atribuí tudo à minha ignorância e fome.

Mas agora, que exagero é esse? Como equilibrar de novo as coisas? Aqueles bichos que não se podiam matar voltaram com tudo, comem e estrangulam nossas galinhas, o Alexandre não tem mais ovos, os marrecos deixam as penas boiando no lago, as d'angola não correm mais
desarvoradas pelos morros, os gansos morreram todos. O faisão dormiu só uma noite por aquelas bandas, nem chegou a ver a mistura verde-mar, foi pro papo escuro do bicho que pode, do bicho que manda. E o pavão que era só beleza manchou o chão de vermelho e arco-íris, pobre na morte feia.

Diz o Alexandre que os lobos chegam pertinho de casa e sangram tudo, sabe que tem até onça por ali, gato do mato, jaguatirica. Ui!

Não tem mais criança que perceba que tratar bem um animal e comê-lo depois está dentro das regras, e sempre dizem, "que bonitinho, não mata, não! "

"E a floresta, e o mato, D Nina?" Quero fazer um chá de goiabeira, mas até tenho medo do chá me queimar a língua com seu fogo de não pode. " "Não pode cortar, é, Alexandre? E todo esse artesanato de madeira que compramos na cidade, de onde vem esses paus?" "Sei não, D Nina,
daqui não é." "Mas não tem um modo de podar essa mataria, não enxergo nem a casinha nova do Laerte..." "Sei lá, d Nina, eles dizem que os bichos e os verdes sabem se equilibrar e que a gente não pode se meter."

Será? Não está me parecendo. "Mas, se o lobo pega o cordeiro está certo, Alexandre?"

Entendo que depois de tanta doutrinação é difícil ir contra o excesso de vida selvagem que aprendemos a respeitar com tanta dificuldade, beijando os peixes na boca, rezando por cada formiga morta, arrependidos. E com tantos protetores, tá tudo protegido. Da saúva á baleia e ao mico dourado. Tudo quanto é bicho, tudo quanto é pássaro, tudo quanto é peixe. Antes estavam sumindo, foi um estardalhaço, agora entram duros, pontiagudos na casa das gentes e comem os ovos e os bobos animais parados, esperando a mordida final.

Dessa vez nem adiantou esconder os ovos das galinhas do Alexandre, Ulisses, o predador mor, foi lá, achou e comeu.
Me expliquem, por favor, ou não, eu até que entendo, leiam Nature Wars de Jim Sterba.


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