Folha de S. Paulo


Bochechas incendiadas

Gabriel Cabral/Folhapress
São Paulo, SP, Brasil, 22-05-2014: Produção com ingredientes para O Melhor de sãopaulo Bares e Restaurantes. Alho. (foto Gabriel Cabral / Folhapress)

Ai, ai, ai, receitas portuguesas com certeza. Aprendera com Mimi, que por sua vez aprendera com outra Mimi, lá nos Arcos, usando cataplana, uma panela desengonçada. Era só meter a comida lá dentro, depois fechar hermeticamente, com aqueles ganchos que tinha ao lado e o vapor se adensava, todos os sabores se confundiam, mas deixavam seu rastro particular a ser descoberto numa curva do dente. Grande aquela Mimi, grandes aqueles peitos arfantes sobre a lenha, sobre a fumaça, bochechas incendiadas.

O porco dava-lhe muito prazer. Gostava dele vivo com seus olhinhos espertos, divertia-se no dia da matança, todos os homens e mulheres a se estafarem para aproveitá-lo inteiro, as comilanças e cantorias, a algazarra, o movimento, a troça. tudo tão alegre e bonito, gente bonita a se saciar, a beber água da bica!

Não havia água que chegasse para esfriar tanta risada.

Dias, meses depois, gostava de enfiar os braços na banha e arrancar de lá um pedaço grande de lombo que ia cozer devagarinho ao lume para as visitas, um regalo.

Tomava umas providências preliminares, fazia a pasta que iria temperar o lombo. Socava, socava, mexia e os temperos a soltarem um cheiro bom que já fazia fome. Para um lombo de um quilo, mais ou menos, socava quatro dentes de alho com um poucochito de sal. O sal sempre ajudava que o alho ficasse pastoso, cremoso, e mais umas pimentas, umas três, conforme o ardor. Um tanto de azeite não ia mal, amalgamava os temperos, não mais que uma colher de azeite, não mais.

Feita a pasta com o alho, o sal, o azeite e a pimenta, passava-a sobre o lombo com carinho, apertando aqui e ali, massageando, fazendo ver ao porco que lhe queria bem e deixava-o por um bom tempo num lugar fresco para que se arregalasse com os temperos. umas oito horas era quanto gostava, achava esse número de horas o bastante para enternecer o porco.

Punha a mesa. Gostava de servir a mesa na cozinha para visitas da família, parece que a cozinha era mais amiga, tudo se podia, rir alto, gargalhar, cantar, bebericar uma aguardente, namorar. Eram dias felizes.

Cortava o lombo em cubos grandes, grandes mesmo, do tamanho de uma bocada e os fritava em banha. O tempo da fritura era o segredo. Lá, tinham as pessoas a mania de fritar muito o porco, endurecê-lo. Não era preciso, uns minutinhos, podia ficar rosado por dentro, era mesmo melhor que ficasse, pois ainda ia cozinhar com as amêijoas tão frescas que os miúdos haviam apanhado.

Já havia lavado as conchinhas, lavava bem para que não restasse areia nenhuma nelas. Pegava a panela que podia ser qualquer uma, mas sempre lhe apetecia a cataplana, colocava dentro dela os pedaços do porco e as amêijoas. Fechava bem, e ali os deixava por alguns minutos. Sacudia a panela para ter certeza que as conchas se abriam e misturavam seu pouco caldo ao suor do porco. Combinavam-se.

Depois era só servir, abria na mesa e espalhava pratinhos com rodelas de limão. Ai, como lhe sabia bem, como sabia bem a todos aquela mistura de terra e mar, assim, do jeito que o bom Deus fizera o mundo!

Receita em "brasileiro"
Lombo de porco com vôngole
Rendimento: quatro pessoas

800 g de lombo de porco
4 dentes de alho
3 pimentas malaguetas
1 colher de azeite de oliva
4 colheres de banha
1 kg de vôngole
sal

Faça uma pasta com o alho, o sal, o azeite e a pimenta. Cubra a carne com esse creme. Deixe descansar em lugar fresco por cerca de 8 horas.

Pouco antes de servir, corte a carne em cubos grandes e doure em banha quente. Enquanto isso, lave e seque os vôngoles e junte à carne dourada. Tampe a panela (pode ser qualquer uma) e deixe cozinhar até as conchas se abrirem —acuda a panela de vez em quando.

Sirva com fatias de limão


Endereço da página: