Folha de S. Paulo


O mistério das letras

Fabio Braga - 25.set.2015/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 25-09-2015: XXXXXXX. PRODUCAO DICIONARIO AURELIO (Foto: Fabio Braga/Folhapress, ILUSTRADA)***EXCLUSIVO***.

Estou com problemas para conseguir comprar livros digitais em inglês ou francês quando foram traduzidos aqui no Brasil. Aqui, se não estiverem traduzidos, consigo. Mas se estiverem, me aparecem como esgotados e não sei como se esgotam livros virtuais. Vão ficando apagados, tristes, até que desaparecem?

Espero que a leitura de originais não pareça esnobe. Foi meu pai que me ensinou e tudo que ele me ensinava se transformava em tatuagem, gravava para sempre. Ele me ensinou a ler em outras línguas na marra, adivinhando, me arrebentando de tentar entender. Talvez só se consiga isso com uma criança, pois é quase mágica fazer com que as letras do livro não apresentem uma muralha. Antes disso, no Rio de Janeiro, na casa da minha avó, me sentei frente a uma estante giratória e peguei para ler Os Três Mosqueteiros. Em francês. Acho que ainda nem sabia que havia línguas diferentes e a minha humilhação foi grande quando vi que as letras se alinhavam de um modo que eu não entendia, não faziam sentido, não me contavam nada.

Juro que chorei baixinho, de raiva, e li um volume inteiro sem entender, de pirraça. E a vida foi passando e minha filha diz que tradução é uma outra língua, tão difícil quanto qualquer outra e mais esquisita. De vez em quando uma surpresa muito agradável, espantosa, na qual a tradução é melhor do que o original, mas aí nem chamamos de tradução, como no caso de um poeta lewiscando pelos Campos! Ui!

"Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos."

Ontem alguém me chamou a atenção para a quantidade de comida que é mencionada em A Montanha Mágica, de Thomas Mann —e como li o livro há muito tempo, não me lembrava. E aquele que li se perdeu nas brumas. Moral da história: estou lendo em português e por melhor que seja a tradução, os grisões me soam falso. Em cinco minutos, conheci um homem de boné agaloado, andando de cabriolé, numa hora em que já se esvaíra um suave arrebol e se instalava uma baça negrura. Como flores viam-se aquilégias e umas poucas campânulas, e o homem, quando tivera crupe ladrava como um lobo, nas sua bochechas túmidas.

Entendem porque minha filha diz que é uma língua, tão difícil como qualquer outra? E temos nesse livro um grande tradutor, conhecido, premiado. É que tradução é assim. Não só as palavras são outras, mas as coisas também.

"Naquela montanha mágica havia cabriolés e bonés agaloados", há que se ter tantas referências quantas precisamos para se ler esse alemão em português. Mas vamos lá, acreditem, do alto de minha velhice aconselho que agarrem os livros com dicionários ou não e mergulhem. Como mergulhadores, vamos nos acostumar com as letras diferentes, peixes prateados e um dia serão nossos, entendidos, introjetados. Digo isso para quem gosta de línguas, para quem não gosta, não leva jeito, é se contentar com a tradução técnica da matéria que precisamos, como cozinha, culinária. Muito fácil, os termos se repetirão sempre e em pouco tempo as letras serão nossas para leitura. Conseguiremos entendê-las como entendem o barulho do vento ou o murmúrio das ondas sem grandes estudos, uma coisa visceral que acontece quando nos esforçamos muito e fazemos comparações e vamos adiante sem importar por não ter entendido uma palavra. Ela voltará tantas vezes que de repente se fará entendida e amiga.

Virou textão, não dá para comentar as comidas da Montanha Mágica, mas fica pra a outra vez, parece que Thomas Mann entendeu que no frio seco, gelado, na falta de assunto só a mesa e a comida traziam um momento de alegria e prazer. Vamos a eles na próxima quarta.


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