Folha de S. Paulo


Nossa vida através das lembranças de comida

Divulgação
Cinema: cena do filme
Cena do filme "Toast", baseado na biografia de Nigel Slater

Não é sopa a vida de cronista. Às vezes você tem certeza que seu assunto vai ser aquele: como fazer jantares fáceis em dez minutos. Olha todas as anotações e, de repente, aquilo soa como um prato requentado. Não, vamos ao último jantar aqui em casa. Mas deu tanta coisa errada, quem vai querer saber? Já podem ir pensando em acertar da próxima vez: bagna caùda deve ser feita sempre com anchovas importadas, prove bem para não ficar salgada e dê um tempo à mesa para brincar com as entradinhas, mergulhar o funcho no creme, comer, conversar, que tal com biscoito de polvilho em vez de grissini?

E tome tempo, é hora de todo mundo se conhecer, destravar a língua, não traga o próximo prato tão cedo! E na sobremesa prove todas as frutas, corte você mesmo e ofereça aos convidados... Um convidado trouxe do México uma misturinha de sal, pimenta vermelha e limão para colocar sobre a fruta verde? Vamos lá experimentar. E saiba que normalmente a pitaia amarela por fora é muito mais doce que aquela maravilhosa e vermelha. Experimente. O segredo é experimentar tudo.

Bom, não vamos falar sobre o jantar, talvez só deixar aqui a receita certa da bagna caùda.

Uma facefriend indica um filme de comida: Toast - A História de uma Criança com Fome, na Netflix.

Por que será que as emoções são tão mais fortes no cinema? Deus me livre, quero chorar o tempo todo, a trilha sonora é triste, os atores são tristes, é melhor ler o livro. É a vida de Nigel Slater, um dos meus escritores de comida favoritos, vai ser bom.

É um pouquinho trágico, verdade, um menino de classe média inglesa, implicante, com o pai implicante, a mãe doente, menino que detesta todas as comidas que lhe são postas à frente, a morte iminente da mãe, que não sabia cozinhar, só usava latas, e o menino esfomeado, a péssima comida da escola. Se os muito viciados em filme de comida quiserem assistir, assistam, mas é mediano pra ruim.

A verdadeira história, do livro do mesmo nome, é uma biografia lembrada através da comida, cada capítulo tem o nome de um ingrediente doce ou salgado que o menino comia na infância. É como se escrevêssemos nossa vida através das lembranças do Bis, do brigadeiro, da nata do leite, das amoras, da bala Paulistinha, da Nhá Benta, da torta de maçãs, da sardinha frita, do chiclete, da bala de goma, das ervilhas cruas, das batatas fritas, do espaguete de domingo...

Nigel Slater é um dos cronistas de comida do jornal londrino "The Observer" e um dia lhe pediram um artigo com lembranças de comida de infância. Fez uma coisa muito pessoal e quando a editora lhe telefonou foi se desculpando que iria consertar. Mas ela se lembrara tanto de sua própria infância que queria era um livro naquele moldes.

Ele, que tanto experimentava as receitas, sal, pimenta, açúcar, para não errar, viu que o leitor queria mesmo eram reminiscências, nostalgia. Pergunte a alguém sobre comida de infância e ouvirá uma torrente de histórias da escola, da padaria, da doceira, da comida da avó. Do churrasco do avô, da comida da mãe. E as lembranças de um são as lembranças de todos. Ele mistura as tortas, com a morte da mãe, com scones do chá, com a nova madrasta que cozinhava divinamente e com as primeiras experiências sexuais.

O livrinho fez tanto sucesso que foi publicado nos Estados Unidos. Ele teve medo que lá as impressões fossem outras e a primeira carta que recebeu comentava que suas infâncias tinham sido as mesmas. Vamos a um exemplo do primeiro capítulo, são todos assim pequenos, fáceis de ler:

"Torrada
Minha mãe está raspando um pedaço de torrada queimada sobre a janela da cozinha, com uma ruga na testa, chateada. Não que seja uma novidade, coisa jamais vista na casa. Minha mãe queima a torrada com a mesma frequência com a qual o sol nasce cada manhã. Na verdade não me lembro de um dia em que a cozinha não tenha ficado cheia de fumaça a nos entrar pela garganta. Tenho nove anos e nunca vi uma manteiga que não tivesse pedacinhos pretos de carvão.

É impossível não amar quem faz suas torradas. Os defeitos das pessoas, mesmo quando te obrigam a usar calças curtas na escola, desaparecem à medida que os dentes mergulham numa fatia de pão torrado mais duro e alcança a parte interior, macia. Depois que a manteiga quente e salgada chega na sua língua, acabou-se, você está perdido. Será sempre um escravo de quem faz tua torrada."

A madrasta que Nigel Slater odiou desde o primeiro minuto era uma cozinheira perfeita, o que fazia as coisas mais difíceis. E ele ia se tornando um gourmet, sabendo exatamente o gosto de cada comida, a diferença de uma maionese industrializada para a maionese feita à mão, de um creme de leite batido fresco ou de lata. Não era de propósito, para implicar. Nascera com um paladar sofisticado, numa família que não se importava tanto com comida e tinha pequenas implicâncias esnobes, diferentes das dele, que sabia o que era bom.

E aí começam aulas de cozinha na escola, o que só complicou a relação na família. A madrasta achou que ele queria se apoderar do seu lugar de cozinheira e passou a cozinhar tanto e tão bem que matou o pai de excesso de comida boa.

Órfão, era hora de trabalhar. É a felicidade. Bifes grelhados, coquetéis de camarão, coq au vin, peach melba. Aquela vida desregrada de cozinheiro, sem horários, dia e noite com a barriga encostada no fogão. Aprende a comer melhor, a cozinhar muito bem, e temos Nigel Slater, hoje, como um dos melhores cozinheiros ingleses, escrevendo livros excepcionalmente bons e bonitos. (Tenho um pequeno problema com ele, fico triste quando não consigo os ingredientes que são sazonais ao extremo e muito ingleses.) Mas através da mera leitura nos dá ideias do que é uma comida simples e boa.

Outros livros de Nigel Slater:

- Real Fast Food

- 30-minute Cook

- Real Cooking

- Real Good Food

- Nigel Slater´s Real Food

- Appetite

- Thirst

*

Receita de bagna caùda (dip quente de anchova e alho), muito conhecida por nós todos, mas que não fazemos por falta de costume. Olhe primeiro se acha as anchovas importadas, pois fica melhor com elas.

Para 6 pessoas

1 pepino descascado, sem sementes e cortado no sentido do comprimento

2 cenouras, raspadas e cortadas no sentido do comprimento

1 pimentão vermelho sem pele e em tiras

1 pimentão verde, sem pele e em tiras

4 talos de salsão em tiras

Cebolinha verde, da grossa, cortadas de atravessado

12 tomatinhos cereja

150 g de cogumelos crus

Grissini

2 xícaras de creme de leite

4 colheres de manteiga

8 filés de anchova importados, lavados e picadinhos

1 colher de chá de alho bem picado

Preparo

Mergulhe os legumes em água bem gelada, com gelo, por uma hora, para ficarem bem durinhos

Enxugue. Cubra com papel filme. Ponha na geladeira.

Numa panela grossa, de preferência de esmalte, leve o creme de leite a ferver e cozinhe-o durante uns 20 ou 30 minutos ou até que se reduza a 1 xícara.

Usando a panela, se for apropriada, ou um réchaud de panela, derreta nela a manteiga, junte as anchovas, o alho, o creme reduzido, acenda a vela e deixe reduzindo mais. Sirva imediatamente, acompanhada dos legumes e dos grissini. Pegue os legumes com a mão e mergulhe no molho. Se o molho separar, bata com um whisk, Pode usar couve-flor, brócolis, funcho e rabanetes.


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