Folha de S. Paulo


Comer do jeito que se gosta

Divulgação
Imagem da série
Imagem da série "Samurai Gourmet", da Netflix

"Eu gosto de delicadeza. Seja nos gestos, nas palavras, nas ações, no jeito de olhar, no dia a dia e até no que não é dito com palavras, mas fica no ar. A delicadeza amolece até a pessoa mais bruta do mundo e disso eu tenho certeza. Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples." Por Manuel Bandeira.

Vale para a série da Netflix, Samurai Gourmet. Takeshi Katsura é um japonês de 60 anos que se aposenta e fica vagando pela casa pequena, como quase todo aposentado. Mora com a mulher, simpática, bonita, resolvida, sem problemas. Mas aquela vidinha de todo dia, dormindo no sofá, não está dando certo. O nosso herói resolve arranjar um hobby, veste um jeans, tênis, camisa de manga curta, boné e vai andar. Lá pela hora do almoço bate a fome.

Começa aí sua vida de pequenos e grandes restaurantes, sua apreciação total da comida, sua gratidão pelo almoço, seja simples, seja mais complicado.

Não está sozinho. Leva consigo seu alter ego, um samurai em tudo diferente dele, que aparece nas horas mais adequadas para mostrar como se comportar se quiser ser um homem de verdade.

Ele ouve, vê, se entusiasma pela imagem do extraordinário samurai, mas na hora de imitá-lo, nada. Continua a ser o homem tímido de sempre. Simples, muito simples. E os restaurantes e comidas vão se acumulando. Usa de todos os sentidos para aproveitar a refeição e os detalhes à sua volta. Observa encantado lustres extravagantes, pôsteres chineses, calendários, muito kitsch japonês.

O samurai aparece em todos os episódios, não se importando em ser inadequado ou não.

E o nosso normalíssimo japonês aproveitando sua cervejinha gelada numa tarde quente, um chicken nugget com molho de tomate, dormindo uma soneca no banco da praça, e o samurai lá, firme, lembrando-o da vida mais grosseira, antes que os costumes da civilização amenizassem tudo. O samurai não sabe o que são bons modos, come com as mãos, bebe direto da garrafa, reclamando. Em tudo diferente do nosso anti-herói.

Passam-se os dias e almoçam fora diariamente, ele aproveitando cada minuto, cada colherada barulhenta de sopa quente, mais um lámen, um café da manhã com peixe, acompanhado de reminiscências de infância. Pousadas à beira-mar, algas e arroz grudento, rabanetes em conserva, sopa de missô. E ele de boca boa, cada mordida aproveitada ao máximo, o peixe grelhado na cor perfeita, simplicidade, gosto de peixe, de vida na água salgada e as lembranças e comilanças da juventude, o sushi, o peixe se abrindo com a faca, fresco, o barulhinho da sopa quente aspirada, o sukiyaki de sua mulher, o cheiro dos croquetes da infância, uma celebração à comida e aos sentidos.

O manuseio do menu, o prazer da escolha, a sociabilidade dos bares, a notável alegria de receber um resultado de exame negativo, a comemoração.

E comer no restaurante mais fino, onde você não se sente à vontade, se acha feio ou inábil na escolha dos talheres. Ainda mais de chapéu e óculos escuros, mas assim mesmo a comida é bem-vinda. O antigo restaurante quase esquecido, mas procurado entre bairros diferentes, estava lá e tinha o mesmo frango empanado com arroz branco e saladinha de tomate.

Quem gosta de comida precisa assistir esse seriado e se encantar com os detalhes, com a cara beatífica de nosso comilão que às vezes tem que lutar contra o velho hábito de aspirar a sopa com barulho, de só comer com hashis, de chupar o macarrão. O samurai pode vir em seu socorro e pedir para trocar os talheres e arranjar mais pão para aproveitar o molho. Se não se puder comer do jeito que se gosta do que adianta comer?

O café, o dia ensolarado, a vida boa, o copo de água gelada na tarde quente.

Nada que o detenha na apreciação da comida, do estar de bem com a vida, de ser feliz por momentos. Mais um bom filme ou série para nossa lista de cinema guloso.


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