Folha de S. Paulo


Não é uma casa de verdade

Falei que não ia mais falar de lembranças, e vou.

Uma casa enfiada num vale, entre morros, em construção. Casa de férias, vulnerável, frágil, sujeita a trancos e barrancos. Se a família passar o ano inteiro dentro dela, desmorona. As janelas não funcionam muito bem, a casa tem oito portas seguidas, todas de tramela, uma com fecho de cidade e chave. Por que o ladrão ou malfeitor escolheria a de fechadura?

Tudo junto fica interessante, e se você frequentou o lugar quando pequeno e volta já adulto, não pode acreditar como a casa diminuiu e aquilo que parecia grande se tornou mínimo. Como a casa de minha avó, que eu enxergava com salões enormes, quartos sem fim e que passou a ser um apartamento comum no Rio de Janeiro dos anos 1960. E o ribeirão da cidadezinha de interior que fui mostrar ao meu marido na lua de mel? Esse com certeza fora represado pois se tornara um riacho chinfrim.

A nossa casa existe ainda. Está lá toda em madeira, feita à mão, pois não tínhamos luz.

Dormíamos na casinha ao lado, caipira, três quartos e a casa de farinha, e a madeira que separava os quartos não ia até o teto. Na hora de apagar os lampiões, era a repetição dos Walton's, Bona, boa noite, Milliet, boa noite, Soninha, boa noite, Vera, boa noite, Luiz Antonio, boa noite, Octavio, boa noite, Silvio, boa noite, Dulce, boa noite, Adherbal, boa noite, e as meninas todas tendo ataque de riso no outro quarto.

É só um abrigo, não é uma casa de verdade. É um teto que nos cobre a cabeça por um tempo do ano, o melhor tempo. Uma casa de verdade é toda marcada pelas pessoas que moram lá, seus apetrechos, suas roupas, seus livros, bibelôs. Uma casa de campo é um cachorro sem dono que corre para qualquer um nas férias, balançando o rabo, língua de fora.

Não é sólida, há uma goteira aqui ou ali, as escadas rangem, a cozinha por sorte tem fogão a lenha, há uma incerteza sobre o que é dentro e o que é fora, as proibições se derretem, as obrigações também. O mundo se torna novo, aberto, sem grandes problemas e cheira muito bem. Há varandas e colchonetes no terraço, a lua e as estrelas brilham com mais força, as chuvas são tempestades contra as paredes fracas. As manhãs dessas chuvas são tão limpas que ardem nos olhos.

Tem pescaria, tem siris, os sentidos funcionam todos, existem velas, lampiões, e essas casas nos cobrem à noite, mas sentimos isso com todos os sentidos, o mundo lá fora, a um tijolo de distância da nossa pele, da nossa escuta. As telhas formam o abrigo, a chuva batendo nelas.

Peri no topo de uma árvore, Ceci dormindo entre lençóis de linho e colcha de chita.

E há os bichos que não entendem nada sobre o que é ser bicho, gostam de se juntar aos que estão dentro, não conseguem fazer uma diferença entre o dentro e o fora. Morcegos, pererecas, gafanhotos, uma cobra ou outra, numa ignorância de bichos e macacos de Rousseau, ingênuos demais.

A cozinha já é diferente, não pelo fogão cambaio, mas pelas coisas que se fazem neles. Pelo peixe recém-pescado, pelas pimentas que entram janela adentro, pelo marreco cruzando as penas nas costas, regado por pingos de mexerica do Rio. Pela bilha na janela, a fruta-pão no prato, o doce de laranja se fazendo, o calor da lenha, a goiabada de um tom que você jamais verá de novo, a não ser nos livros do Pedro Nava.

O pão que nunca é fresco, mas passado na frigideira com manteiga, e os bijus como os antigos.

E a sensualidade das conversas à noite, as palavras se batendo umas contra as outras, uma promessa de futuro.

A avó de turbante fazendo óleo de urucum, descascando laranja para doce, Zeny na goiabada juntando lágrimas de água, a mãe na arrumação da mesa, nada que lembrasse a cidade e maculasse a roça, o cheiro das vacas lá fora, o burro teimoso, as galinhas querendo entrar na sala, o passarinho vermelho na janela comendo banana.

Nessas casas você se sente bem-vindo, há tempo para tudo, as avós jogam baralho com os meninos, há conversas sem fim, o riso é solto, pode-se comer muito, tomar café com biscoito, descer para a cidade tomar sorvete, lambuzar a boca. Na geladeira pousam coisas diferentes como siris azuis e deitados no chão os cachos de banana-ouro.

É nesses lugares que estamos perto do mundo, das coisas do mundo, do verde sombrio das árvores, do abacateiro, das jacas gosmentas, da água do rio tão gelada que doe, do grito das d´angolas, da gordura obscena do porco. Há frio e calor no mundo, você come o doce de banana com creme de ovos e claras e sente que aquilo é viver e que um dia te escapará por entre os dedos, apesar da mão bem fechada.


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