Folha de S. Paulo


Paola nos tira do lugar comum

Pablo Saborido/Folhapress
chef paola carosella em sua casa - foto pablo saborido - ****USO EXCLUSIVO ILUSTRADA**** ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
A cozinheira e jurada do programa ‘'MasterChef'’, Paola Carosella, em sua casa em SP

O livro da Paola Carosella saiu em outubro, eu deveria estar enroscada no meu próprio lançamento e não vi o dela. Na verdade, encontrei numa prateleira de livraria e me chamou a atenção por ser um belo objeto. Como gosto de livros bonitos, bem cuidados, bons de pegar e de cheirar. E de ler, com certeza. Ela escreve bem, dá para ver porque é uma biografia... com receitas. Fiquei surpresa ao ver que era da Paola, de quem tenho tantas boas lembranças. Não sei se ela própria se lembra, mas eu estava no primeiro jantar que fez para um pequeno grupo, em São Paulo. Foi na casa da Sofia Carvalhosa, ela era a cozinheira e o Gil Leite o garçom. Só lembro que era bom, mas bebemos demais, quase todos os melhores vinhos do Josimar Melo, que viajava e quando chegou botou fogo pelas ventas.

Depois Paola abriu o Julia. Fiquei encantada. A palavra é essa mesmo, está usando de novo, diante de tantos desencantos. Primeiro porque ela escreveu uma citação do livro "Não é Sopa" na parede, à mão, bem na entrada, e segundo porque a comida era um encantamento. "Um encontro surpreendente, um desconhecido já conhecido... Um prazer pelo novo ainda mal digerido. E uma sensação de ruptura, de sermos arrancados dos nossos sentidos, um sentimento de plenitude, de vivência, de estarmos ligados na tomada, de volta ao tempo de criança. (Uma tradução minha, mal feita, de Jane Bennett.)

O Julia era como se tivéssemos dando um passo à frente, mudado, ou viajado para longe. Sei que a comida era fresca, fresquíssima, a caipirinha de mexerica do Rio não tinha igual, as batatas fritas era diferentes e servidas num copo forrado por um guardanapo e nunca mais servi batatas de outro jeito, e era uma das primeiras vezes em São Paulo que se comentava a gana da cozinheira linda e trabalhadeira que ia às compras todos os dias e por isso não repetia menus, servia o que estava bom naquele dia.

O Julia tinha uma comida nada complicada, mas daquelas que você quer comer todo dia, quer voltar, voltar e voltar. O que é raro.

Nesse livro ela vai contar com uma prosa singela e bonita como aprendeu a cozinhar, e a sua vida também. As duas coisas iam sempre juntas. Os restaurantes onde estagiou, seu gosto pela cozinha em si. "Uma das coisas que mais gosto até hoje no meu ofício são as rotinas de uma cozinha, as tradições específicas, as danças sincronizadas, a peça de teatro que se monta e funciona impecavelmente e é um dos espetáculos mais bonitos e tesudos de se ver."

A Paola presta atenção nas coisas pequenas. Muita atenção. Enxerga o tomate, o corte de uma carne, a azeitona, o modo de dobrar o guardanapo, a curvatura da colher, o roxo de um polvo, o escândalo de uma romã. Acho que gosta de homens interessantes, de nadar no mar, de caminhar a pé, de uma cozinha estalando de limpa, de andar de cara lavada, de fazer uma maquiagem que a deixe pra lá de linda.

Nesse mundo desencantado, a comida de Paola nos tira do lugar comum. Ela pensa, não é conformista, é alegre, sexy, gosta da vida e usa tudo isso para fazer comida boa.

Estou falando só da cozinheira? Da menina nem pobre nem rica, argentina, inteligente e charmosa? Não falo do livro onde ela expõe o prazer que a cozinha lhe dá. Danada, sabe escrever também, coisa que não sabíamos.

Aprendeu a cozinhar com programas de TV enquanto a mãe trabalhava, teve avós adoradas, amigos, perdeu cedo o pai e a mãe. "Vamos cozinhar que a vida segue." Francis Mallmann apareceu na sua vida e lhe ensinou outros modos de encantamento. Um dia Mallmann veio ao Brasil e Paola veio junto, para enfrentar o Figueira de Belarmino Iglesias. Era uma experiência que jamais tivera.

"Ao longo de meses, as coisas foram se acomodando. A comida estava melhor e os brutos viram que eu também podia ser bruta. Agora, havia um respeito mútuo que deixava as ordens e as tarefas menos pesadas. Experiência. Experimentar. Errar. Sofrer. Chorar. Ter raiva. Acertar. Errar de novo. Gritar. Sorrir. Sentir o prazer da conquista. Errar de novo. Em um determinado momento senti que havia domado a fera. Foi como um máster em administração de egos e desastres naturais. Egos próprios e alheios. A difícil arte do equilíbrio. A difícil arte de descobrir por meio da experiência a vida que queremos ou que podemos ter. E o porquê."

Mais um motivo de encantamento, de um teimoso agarrar-se com a vida, uma consciência aguda de sobrevivência. E com o correr da vida, tornar-se outro.

A sorte de quem lida com comida é a quantidade de coisas que surpreendem e perturbam.

Desde a ostra ao cordeiro, a lenha e as brasas, a alface tão frágil, o susto de um minúsculo aspargo, a surpresa do ovo azul. Pequenos momentos de beleza de um quiabo aberto, e a casca dura do açúcar caramelado. As pequenas coisas que, de repente, juntas, acumuladas pela nossa sensibilidade, podem criar uma ética de generosidade.

Para falar a verdade as receitas são as de sempre, como a própria Paola diz, são do Arturito, o restaurante que ela tem agora, e parecem deliciosas e vou fazer uma por dia para relembrar o Julia que tanto me pegou de surpresa. E comprem o livro "Todas as sextas" que não vão se arrepender, é muito bem escrito e conta a trajetória de uma verdadeira cozinheira. A Paola Carosella. É da Melhoramentos. Esqueci das fotos! São do marido dela, o fotógrafo inglês Jason Lowe, que a inspirou nessa nova aventura de escrever e são exatamente a metade da força que o livro tem.


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