Folha de S. Paulo


Ser outro a cada dia que passa

Mateus Bruxel - 24.mar.2011/Folhapress
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 24-03-2011, 11h: Funcionário organiza frutas no Mercado Municipal de Pinheiros, o Mercado Municipal Engenheiro João Pedro de Carvalho Neto, na rua Pedro Cristi, em Pinheiros. O Mercado Municipal Paulistano, na rua da Cantareira, na região central, passou de entreposto de abastecimento a atração turística e hoje tem preços mais altos que os demais mercados municipais. Por isso, muitos antigos clientes do local passaram a comprar queijos, especiarias, azeite, grãos em outros estabelecimentos que oferecem os mesmos produtos por menor valor, como o Mercado de Pinheiros. (Foto: Mateus Bruxel/Folhapress, COTIDIANO) ***EXCLUSIVO FOLHA***

Assim fico doida. Queria tanto escrever um livro e o mundo inteiro está aí pronto para ser contado e aumentado ou quiçá diminuído. Sempre digo que meu sonho jamais realizado é andar dois quarteirões, um pouco mais talvez, e simplesmente me transformar em outra pessoa, experimentar outra vida no bairro seguinte.

Claro que não passo os dias pensando nisso, mas de vez em quando bate forte. Como quando fui ao Mercadão com minha cunhada e na frente havia um prédio daqueles entupidos de gente, grafitado, roupa a secar nas varandas, cheirando a sopa de repolhos.

E deu vontade de ir caminhando para o elevador e morar ali, junto do mercado, fazer as compras cedinho, escorregar nas cascas de laranja cheirando a azedo, cumprimentar o homem de bigode muito preto que jogava as melancias longe, como se fossem leves bolas de tênis e que nos cumprimentava com um "aeeeê", como se fossemos, e quem sabe éramos, suas primas de além-mar.

Mas é nos trens que esse sentimento de "no pertenecer del todo" nos invade. Nas chegadas à estação dos subúrbios, a máquina diminuindo o passo e as casinha à noite, todas iluminadas, hora de jantar, de dormir, de ver TV, de chorar, de dormir, de viver com uma esperança pouca, sem muitas cantorias. Nos próprios trens, talvez pela exiguidade do espaço sentimos a vida do outro mais próxima, qualquer comida se transforma, o balanço leve dos trilhos se estraçalhando, a louça branca oval, do formato dos bules, do cozinheiro se equilibrando na cozinha estreita e soltando com maestria o bife a cavalo.

E já sentiram o tremor na barriga de entrar em outra casa, de sentar à mesa com toalha de plástico de flores, ser servida por alguém que você pouco conhece de uma torta de ruibarbo com creme de leite batido na hora? E onde as bananas não existem, os melões sim, e muito bons, e fazem doces de abóbora com nozes.

E a banheira é enorme e o fluxo do chuveiro diferente, e a água também é outra e endurece seu cabelo e a banheira te engole, a maior que você já viu. É preciso um aprendizado longo de ser outro a cada dia que passa, cada semana, o perigo é o passar do tempo e nos acostumarmos aos cajueiros e àquela praia sem coqueiros.

De manhã é um tal de acordar cedo, você nem acabou de ler aquela biografia velha e fascinante do Montgomery Clift e a mulher te faz levantar com o cheiro de uma rabanada portuguesa? E lá vamos à feira comprar peixes jamais vistos e cozinhá-los com dados de porco na cataplana.

E você olha aquela pessoa desconhecida que come trincando os dentes muito brancos, arrancando sumo do salsão e começa a achar graça, porque no mês passado o homem era muito louro e inapetente e só parecia sorrir quando lhe mostravam uma enguia defumada. É hora de ir, de fugir, de ir sentir aquela outra maré, os peixes fritos, a mandioca. É um perigo o tempo fragmentado começar se unir em episódios, vamos embora, minha gente, é hora de provar a papa de arroz do missionário pobre com seus olhos quentes.

Para que servem todos esses livros de receitas frias, espalhadas por capítulos como se a verdade de cada canto do mundo fosse essa? Acaba a sua faxina de velhas coleções, joga fora a metade, a vida das comidas não está nessas letras pequenas, pensa bem, sai, vai lá, experimenta com as mãos, com todos os sentidos, rasga seus livros mentirosos, eles querem é aplainar a fome de viver.

Se o comodismo bater, relaxa, no fim é a mesma coisa, mudam os formatos das frutas, cozinham-se os legumes de outro jeito, bebe-se em copos mais finos ou mais grossos, há corpos quentes e frios, cabelos que se enrolam ou escorrem finos, meninos louros de cachos e chupeta, mas com um esforço grande é possível juntá-los, descobri-los íntegros, num grande puzzle, sempre o mesmo, com pequenas diferenças de fabricação. Ah, sabe, no fim tanto faz aquele quarteirão ou esse...

Ah, e por falar em livros como foi que me escapou o da Paola Carosella, minha querida Paola, que beleza de livro, tem muito a ver com o que se fala acima, mas calma, deixemos para a próxima semana.


Endereço da página: