Folha de S. Paulo


Quero só comer gostoso e bonito

Divulgação
Coluna Josimar - Torresmo de pancetta com goiabada, uma das alternativas da nova Casa do Porco
Torresmo de pancetta com goiabada, d'A Casa do Porco

Não tenho ido muito a restaurantes. Quase nada. Não é só a crise que me impede, ando preguiçosa mesmo. Todo mundo me convidou durante esse ano para o restaurante do Jefferson Rueda e da dona Onça, A Casa do Porco Bar mas eu lia no menu "porco com goiabada" e desanimava. Já lá se vão trinta anos de "nouvelle cuisine", de instrumentos novos, de ingredientes perfeitos e para mim já deu. Até sei que vou gostar de porco com goiabada, mas não me digam, prefiro prová-lo levemente doce e sem nomes para me fazer dizer, oh! As transformações que haviam de acontecer aconteceram, chega de novidade por uns tempos, quero só comer gostoso e bonito, nem é preciso que me digam o epíteto do que estou comendo, se for bom eu aceito agradecida, muitas vezes encantada e comovida.

Nunca fiz crítica de restaurante por uma impossibilidade etílica. Vou chegando e já tomo uma caipirinha, ou vinho, ou seja lá o que for, bebo depressa demais, e já começo a enxergar tudo com olhos que não são inteiramente meus, ora muito tolerantes, ora implicantes.

Então é melhor fazer a crônica do que vi e senti, mas sem opiniões excessivas, sem tomar partido, leves impressões somente. E falo muito em linguagem, a linguagem do cozinheiro. E no dia seguinte tem gente me dizendo que falei bobagem, que história é essa de linguagem? Não quer dizer nada, é papo furado.

Talvez eu não me faça entender direito. Sabe quando visitamos uma casa pela primeira vez, atravessamos a sala, vemos o jardim, o cantinho da TV, e nos voltamos para o dono e dizemos "Puxa, a sua casa tem a sua cara". Geralmente são casas vivas, cheias de livros, não muito arrumadas, com o tricô da dona da casa pousado no sofá, o gato se enrolando no novelo, um tapete velho feito pela avó, de trapinhos rejeitados, enfim, uma casa que você olha e sabe que ali mora gente. E pode ser moderna e reluzindo de limpa, mas também com a cara do dono que é moderno e reluzindo de limpo.

Pois, com um ano de atraso, resolvi ir à rua Araújo,124. Confesso que o que me afastava do porco e do torresmo totêmicos era a barriga dele com goiabada. "Ah, não, mais uma achado ímpar!" Sabia que era gostoso, pela vida afora costelinhas agridoces fizeram minha alegria, mas se for tudo muito forçado, eu como minha costela frita aqui em casa mesmo, sem grandes problemas de me movimentar até o centro da cidade. Teve um tempo que púnhamos as costelas em salitre e elas ficavam rosadas e macias, mas foi proibida a venda de salitre, acabou-se o que era doce e deve fazer um mal danado, aliás, agora tudo faz ou um mal danado ou um bem danado.

E lá fomos nós, duas mulheres desguarnecidas enfrentar a fila d'A Casa do Porco. Fila divertida onde todos se divertiam comendo torresminhos de pele, pururucas como se fosse pipoca, outros comprando sanduíches de porco pela janela, um fast-pig brasileiro.

Mas meus cabelos brancos fizeram com que nos acomodassem, como nos restaurantes japoneses, em dois banquinhos que davam direto para a cozinha. O acolhimento não era de restaurante, era de casa, não nos sentimos nem um minuto oprimidas por pretensão, ou por outra coisa qualquer. Queriam nos agradar, queriam que nós gostássemos, queriam que nos sentíssemos bem, queriam nos alegrar.

Fiquei bem encantada com a casa. Exatamente como um porco do qual se come tudo menos o grito. Onde se aproveitou todo o espaço, de cabo a rabo. Não é grande mas tudo tem seu lugar, o salão onde se pode compartilhar a mesa, as grelhas bem no meio da cozinha onde chega o porco inteiro para começar a assar na sua frente, na lenha, uma cerimônia bonita como uma antiga oferta aos deuses, o bicho aberto, seguro pelos cozinheiros, pronto a se rejubilar nas chamas da oferta aos que têm fome. Não é aquele porco que vai ser comido. Ficará uma sete horas ali, ao lado do que acabou de cozinhar, ou já vai lá pela metade assando lentamente como manda o figurino do dono, que não me espanto, foi açougueiro e se orgulha de suas origens interioranas, riopardense que é. Tenho um amigo que diz "o porco é curioso, teimoso e independente". Verdade, e o Jefferson Rueda também.

Sabe tomar conta de uma cozinha, o homem. Ora conversa e anima os clientes, ora põe toda sua atenção na chefia daquele pedaço de mundo onde o porco assa. Vê-se a precisão e ordem dos que cozinham, repetindo os mesmos gestos atentos, maquinais, o dia inteiro capitaneados por ele, treinados à exaustão.

É incrível como o Jefferson Rueda consegue se dividir entre o palco e a plateia, mas o faz com precisão e simpatia. Sinto no menu a influência japonesa, tem até um sushi de papada de porco, mas não pergunto nada, já na segunda caipirinha geladíssima, com aquele gelo brilhante e limpo rodando no copo em barulhinhos.

Acho que entendo. Tudo ali se faz em torno daquele porco, ele é o homenageado, mas o Jefferson quer mostrar que já deu suas voltas pelo mundo, que é criativo e bom cozinheiro, que se quisesse transformaria o bicho sobre as chamas numa leve espuma de Ferran.

E usa pinças, e distribui florezinhas sobre tartare de porco, mas está só provando que é contemporâneo, a clientela quer ver essas pequenas mágicas e ele sabe executá-las com bom gosto e graça, mas seu coração está ali todo inteiro na perfeição do porco utilizado em todos os seus pedaços, servido com a couve mais bem cortada do mundo, o feijão ao lado, a banana picadinha, e a farofa, não tem farofa, Jefferson? Não vi, com certeza, muito óbvia, não era necessária.

Tudo funcionando como um relógio azeitado, traduzido para nós na mais perfeita das linguagens, e um mercadinho lá dentro mesmo, e embutidos finos e bons, umas frescuras pra agradar o povo, para que possam dizer "oh" e "ah", mas quem não desculpa uma lambida de goiabada sobre a carne tenra, quem não desculpa umas florezinhas depositadas com graça e respeito sobre uma costela? É o tira-gosto, a graça, a brincadeira, a ironia, tudo muito saboroso e engraçado, mas o que importa mesmo é o porco, o porco totêmico, o bom feijão, o verde da couve. É a tal da linguagem do Jefferson, a cara dele, trabalhada, estudada, modificada, posta do avesso e um dia se mostrando inteira, domada, no tom que ele sabe tocar, com toda uma panóplia à volta, enfeites, histórias, mimos, esforço, estudo, fracassos, o Jefferson deu o sangue, sangue dele, ao molho pardo, tudo ali mostrado no bicho que doura, crepita, que se dá inteiro para alegria de quem vai comê-lo, desfiado grosso, bem temperado. É preciso ir muitas vezes, fazer um estudo do porco, esse querido, generoso, gostoso.

Para uma cobertura completa com fotos:
Blog Gastrolândia, de Ailin Aleixo

Livros:
Porco - Danusia Bárbara
Pork and sons - Stéphane Reynaud - Phaidon
Nose to tail eating - Fergus Henderson
Beyond nose to tail - Fergus Henderson McMillan
Everything but the squeal - John Barlow - FSG
Pig Perfect - Peter Kaminsky
Cozinha caipira do Chico Bento - para adolescentes e adultos - Jefferson Rueda e Mauricio de Souza.


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