Folha de S. Paulo


Não acreditem em manuais de como escrever

Como estávamos no assunto "escrever um livro de cozinha" e interrompemos para falar sobre o México, seria de bom tom continuar o que se estava fazendo. Acontece que recebi tantas boas cartas, tantas fotos, anedotas, histórias, que vai ser difícil ensinar a quem já sabe. Moral da história: escrever é fácil quando o assunto vem de dentro e não há excessiva preocupação com a opinião alheia.

Pego um livro americano, um manual que ensina sem mencionar problemas, como se fosse a coisa mais fácil do mundo, ser ou um jornalista, ou um crítico de comida, autor de livro, blogueiro. Será que é só americano que tem essa sorte de tudo acontecer direito, como manda o figurino?

Primeiro devemos nos apresentar ao editor de uma revista e informar qual o assunto que mais nos emociona. Notícias, perfis, artigos, memórias, viagens, entrevistas. Crítico, talvez? Não escrever nem mais nem menos do que é necessário. Tomar notas. Descobrir sua voz. Bom, seria o ideal, mas não é sempre que isso acontece. Você esta lidando com gente e gente é difícil.

Vou contar o meu caso e percebam como o acaso intervém sempre.

No meu bairro havia um jornalzinho, a "Gazeta de Pinheiros". Tentei conversar com alguém, não havia encarregado. Fui pra casa e comecei a escrever uma pequena introdução com algumas receitas. Voltei à revista que continuava sem interlocutor e deixei na mão da recepcionista a minha primeira obra culinária. Foi bom. Na semana seguinte eu estava publicada, a matéria era simpática, nunca se conversou sobre pagamento e continuamos assim por um bom tempo até que me ligaram de lá que queriam fazer uma matéria comigo e com meus filhos. No dia marcado, lá estava a repórter, fotos feitas, ficam todos bonitinhos e nunca mais pude entregar a seção pois aquela própria repórter se encarregou disso.

Tinha tomado gosto e comecei uma peregrinação. Primeiro procurava alguém que conhecesse alguém —fui parar na Vogue, onde o Rudi Crespi conversou comigo e comentou com a amiga dele "Ela é rica, não tem vontade trabalhar." Errou nas duas conclusões, e não percebeu que eu tinha um texto muito metido a erudito, chato pra burro. Sugeriu que eu escrevesse sobre a Taittinger Brut. Virei de costas para escrever o título, para que ele não visse que nem o nome do champanhe sabia.

Começou aí o estudo, a pesquisa. Não sei por que achava que tudo havia de ser difícil, complicado. Escrevi um artigo onde todas as palavras começavam com a letra "a". Uma Perec ousada. Não ficou mal. Lembro que fui entregar ao Ignácio de Loyola, que nunca apareceu. Já na rua, indo embora, o encontramos, havia ido ao cabeleireiro e estava impressionadíssimo com o corte, queria saber se gostávamos ou não. O cara que havia me recebido dissera, para me consolar, "Olha, não tenha medo de não conseguir um emprego, quem escreve um artigo todo em "a" escreve qualquer coisa".

Depois eram as esperas na Folha. Ela já vem, tem hora marcada, mais um minutinho só. Ela, que não me lembro quem era, nunca chegou ou nunca me recebeu.

Comecei a ser procurada para traduções. O Josimar Melo sabia que havia uma tradutora razoável, uma delas era a mãe do seu amigo Octavio e a outra sogra do seu amigo André.

Um dia achou uma em duas, pois eu tanto era a mãe do Octavio quanto a sogra do André. Ele, Josimar, tinha uma coluna de receitas na Folha, coluna que deixaria em breve. Me ofereceu o lugar, avisando que eu seria mandada embora se escrevesse que a panqueca era boa. Só a receita, Nina, só a receita.

Fui levando e de vez em quando escapava e punha um parágrafo explicativo. O meu editor era o Zeca Camargo que cortava o que lhe dava na telha com alegria enorme. Primeira linha, linha do meio e última. Isso tinha o poder de tirar completamente o sentido e eu lia boquiaberta o quanto de bobagens havia escrito.

Uma vez um desses encarregados me explicou: "Sabe o que é, Nina, é que entramos para o jornal afim de arrasar, de escrever sobre política, economia, e caímos de boca nas empadinhas, o que nos deixa pra lá de chateados".

E esses meninos que queriam ser diretores da Folha iam passando de três em três meses, mais ou menos. E a cada um deles eu devia matérias diferentes. Alguns entendiam um pouco do assunto, sabiam dar títulos, outros esvoaçavam por lá sem saber a quantas andavam.

Uma vez, não sei o que me deu na cachola, desobedeci todos e todas e escrevi uma pequena crônica, não ficou má. Foi publicada como viera ao mundo, por um foquinha que a recebera. Alguém do jornal gostou, e ordenou que a coluna não fosse mais mexida e sim publicada como chegasse.

Era uma vitória sem precedentes e podemos dizer que o meu começo na Folha. Essa lua de mel durou quase 30 anos. De vez em quando o caderno mudava e eu saltava fora para ser convidada depois pelo novo editor a escrever lá. Só que ele não tinha noção que havia mais de 20 anos que eu já escrevia lá. Eu aceitava feliz, e assim fomos indo até há pouco tempo quando fui eleita para a web.

Sinto que aí tem coisa, 30 anos é tempo demais, há que deixar o lugar para os jovens. Aceito, meio inconformada. E, com isso, o que quero dizer é que não acreditem em manuais de como escrever e ser editado. Na minha opinião vocês estão todos maduros, é ir à luta! E enfrentar a sorte e o acaso com unhas e dentes.


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