Folha de S. Paulo


Seus primos não reclamarão

Tenho sentido que a procura por receitas, ou restaurantes, anda definhando um pouco.

Excesso de oferta, com certeza. E adivinhem o que me pedem? Conselhos de como escrever um blog, um site de comidas, um site de serviços. Para falar a verdade, acho que escrever é escrever qualquer coisa, tanto faz o que se escreve.

O primeiro conselho é sempre igual. Leia, leia, não precisa ser comida, amplie seus horizontes, assista novelas, séries, leia gibis e Proust e Guimarães Rosa e Paulo Coelho e Euclides da Cunha e Como água para chocolate. Vá ao cinema e assista Estômago.

Mas, sei que vão responder que isso já fazem, são leitores bons, querem é passar para frente o conteúdo que já adquiriram.

Bom, não sou professora de blogs, senão os meus seriam melhores, teria achado o tom mais depressa. O bom livro geralmente te pega na primeira página, você começa a ler na fila do ônibus e já não pode parar. Os conselhos são sempre muito parecidos: traga com você um caderninho e caneta em que possa anotar coisas que aparecem na sua cabeça e que fogem com enorme facilidade. Coisas que você escuta e que também esquece. O caderninho guarda tudo e pode vir a servir para botar fogo nas ideias.

O mais desagradável de escrever é que o aprendizado não acaba nunca, temos que estar atentos ao mundo, saber um pouco de cada literatura pois não tem outro jeito.

É nela própria que vamos achar a nossa. Nem sempre. Pensei em escrever uma autobiografia, li todas que pude, e...nada. Mas, pelo menos esses livros que vão seguir o seu pendor de escrita, se não te inspirarem, vão pelo menos dizer porque são tão desinteressantes.

As editoras costumam não aceitar livros de quem nunca escreveu um livro. Um amigo meu, belo escritor, já via sua carreira soçobrando por nunca ter escrito um livro, logo não poderia começar o primeiro. Demoramos um pouco a ter a ideia gloriosa de escrever dois livrinhos, um de poemas, outro já nem me lembro de quê, e publicar por ele mesmo. Quando perguntavam se havia escrito algum coisa sacava os dois nomes sonoros e a coisa corria com mais fluência.

Escrever o primeiro livro é para os fortes. A rejeição ronda a vida do escritor como um urubu escuro e de maus bofes. Você sabe internalizar frustrações? Tem capacidade de manter dois empregos?

Um dia perguntei à minha editora, depois de ver que meu livro de cozinha alcançara relativo sucesso, se poderia viver de escrever. Ela não respondeu na hora. Alguns dias depois disse que havia feito as contas, para sobreviver eu deveria mudar de casa para um pequeno apartamento num bairro afastado, no terceiro andar, sem elevador. Comprar no máximo um carro bem pequeno. Como a família não queria escrever não tentei convencê-los da mudança.

Escrever é solitário, não combina com enceradeira, nem crianças jogando futebol, nem gente querendo vir conversar e contar sonhos. Mas é possível aprender a se concentrar, e o trabalho pode se tornar prazeroso. No outro dia mesmo, estava lendo o livro Do Jove e vi que das primeiras vezes que tentou escrever era sobre um navio de escravos que se rebelava ou coisa parecida.

Todo ano tento, aliás, escrevo sobre a ceia da quinta-feira santa e escrevo a mesma coisa, com variações. A historinha da mulher que aluga uma andar de sua casa para a Santa Ceia, que medita sobre o jantar que se aproxima, que varre o chão, limpa as janelas, etc. Vocês não podem imaginar os problemas, a não ser que sejam muito cultos e eruditos. Os problemas que me aparecem são de enlouquecer. Quero colocar um turbante na cabeça dela e não sei se podiam usar turbante e que tipo de pano usavam. Tenho que procurar figurino de roupas, pois é ela que vai arrumar a mesa. Usavam-se toalhas? Como? Aquela amassada com os apóstolos é de da Vinci, não é?

E a minha mulher quer cozinhar, não sei que ingredientes entregar a ela. É de desesperar.

Logo esses assuntos que não conhecemos vão atrapalhar o primeiro livro. Acho que o melhor é pensar em si mesmo para começar, memórias de infância que são suas e ninguém tasca. Diz Piaget que não nos lembramos de nada, só memórias fabricadas. Melhor ainda, vá em diante, seus primos não reclamarão. Eu, por exemplo, me lembro perfeitamente do Zeppelin nos céus de Copacabana. Não havia nascido quando ele fez suas peripécias no Brasil, o que fazer? Eu vi.

Os professores de escrita criativa pedem que os futuros escritores visitem algum lugar possível de quando tinham, por exemplo, uns 8 anos de idade. Olhar tudo, cheirando o jardim, as flores, catando tatuzinhos, pulando o muro. E os barulhos, os cheiros da cozinha?

E, caderno na mão, vão gravando tudo, vão lembrando. Ah, e a linguagem não pode destoar daquilo que você viveu. Não há como discursar como o nosso presidente Temer, sério, e dizendo falo-ei. O que você escrever vai ter que combinar com o ambiente, com a atitude. E não é difícil, as palavras brotarão mais depressa do que pensa. Posso sentir o friozinho da manhã, a empregada penteando o meu cabelo no tanque, a conversa quebrada pela dor do pente passando pelos nós dos cabelos, as perguntas que fiz um dia sobre o sobrinho que havia nascido e me intriguei que crianças nascessem sem que os pais se casassem.

Não se envergonhem, nós éramos assim, vamos escrever exatamente do jeito que éramos, sem vergonha, nem pudores. Há tempo pela frente para mudanças.

Então, comecemos hoje, vamos escrever um parágrafo sobre nossa infância tão distante, estou esperando, prometo que também escrevo.


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