Folha de S. Paulo


Mistura sadia de coisas

Acabou a página do "Comida". Acabou a página do "Comida", da Folha. Acho que durou muito, até. Difícil pra burro manter um caderno inteiro semanal, com um assunto tão explorado no mundo inteiro, sem cair em clichês e receitas. Foi bom enquanto durou. Foi ótimo, até.

Sinto minha vida enroscada com comida e com a Folha. Trinta anos não é brincadeira de criança. (Sem um dia de folga ou de férias, grande feito. Aliás, folga e férias para quem escreve sobre comida é cozinhar, viajar para comer, escrever sobre o que comeu, com muito prazer.) O mundo visto através dos alimentos, uma deformação profissional. A mais dolorida é estar no México com o marido, provando milhos negros e goiabas verdes com sal e a admoestação dele, olhar sentido, machucado: você não acha que viajamos até aqui para deixar tudo de lado e comer fruta dura arrancada do pé, não?

Eu achava que sim. E para comer comida de rua e para visitar os melhores restaurantes marcados com meses de antecedência.

Foi uma época feliz, passou depressa, cheia de descobertas e prazeres e sustos, com o movimento da nouvelle cuisine provocando, fazendo rir (a nouvelle cuisine nos seus primórdios tinha uma alta dose de citações e piscadelas para o comensal).

A cozinha entrou na moda. A sustentabilidade se firmou. E às vezes exagerou, as pessoas engordaram, muitos livros novos foram escritos e tantos outros traduzidos, ingredientes entraram e saíram de moda, fizeram bem e mal à saúde, conforme os últimos estudos. A ciência e a tecnologia se empenharam em melhorar os ingredientes sem tirar-lhes o sabor, a boa ciência e a boa tecnologia, digo eu.

E aqui no Brasil navegávamos na descoberta da comida do mundo, deslumbrados, mas nos indagávamos todo o tempo sobre identidade, sobre qual seria mesmo a cozinha brasileira, porque conhecíamos todos os cogumelos do mundo e nos faltavam informações sobre o pequi, o cajá, a jaca.

Brasilzão sem fim e sem documentação, era mais fácil pesquisar os peixes do Laos do que uma tartaruga da Amazônia.

Na verdade, quem se matava para descobrir o Brasil dava com os burros n'água e era o foodie.

O grande público, mesmo, vivia satisfeito, sem muitas indagações, comendo arroz com feijão, bife batidinho com cebola, galinha assada e ensopada, pastéis e uma verdura em salada e outra cozida. Alguns. Uma grande maioria começou a usar só comida pronta para ser aquecida na hora.

Fui aos meus cadernos de receita do bufê que comandei por quase 30 anos e confesso que tive vergonha. Foi uma época que, por mais que quiséssemos comer "autenticamente", comíamos a comida da China, dos Estados Unidos, da França, da Turquia, pense qualquer país e ele estaria representado por nós, sem esquecer da Índia, e muito pouco do México. Existia a comida com cara de comida de Michael Pollan e o insólito de Adrià.

Alguns restaurantes não emplacavam aqui, qual seria o motivo? Quem melhor me iluminou foi o Josimar Melo, meu amigo e crítico da Folha que demonstrou por A mais B que só iam para frente os que tinham uma colônia fixada aqui, pois assim seu público se duplicava, os nativos daquela terra e nós, querendo conhecer a comidinha deles, nos deleitando com a Tailândia de mentira, porque toda comida copiada é um pouco de mentira e tenta se ajustar ao gosto de quem vai comê-la e quem iria comê-la. No caso, éramos nós, brasileiros da gema que tudo começávamos com um refogadinho. E sempre arranjávamos desculpa para uma farofa de farinha de mandioca e uma boa pimenta.

E as modas e modinhas nos pegavam sem parar. Vamos dizer a verdade, isso nunca foi mau, estavam nos cansando, nos preparando para receber a nossa comida de verdade, não existe melhor perspectiva do que a de nos ver à distância e comparar.

Bocuse era o cozinheiro do momento, chegou aqui com uns dez anos de atraso, o que é normal, mas em São Paulo, Laurent Suaudeau, seu discípulo, tentava teimosamente enquadrar a paca nos seus terroirs, pespegar nela uma "appelation controlée", e no seu caminhar ia levantando o nível do cozinheiro, ensinando disciplina, limpeza, cabeça alta de orgulho do seu uniforme.

Fez mais pela cozinha brasileira que muito chef nosso, caipira, nascido nos pampas ou junto de Mato Grosso. Chegamos ao Ferran Adriá, ao Noma, mas os nossos grandes cozinheiros, pouquíssimos, é verdade, conseguiram honras e prêmios fora do Brasil pela primeira vez na nossa vida extraindo daqui o exótico e trabalhando com criatividade.

E daí foram aparecendo as faculdades de culinária, o chef arrogante (ou não), e nós, críticos e cronistas correndo atrás, tentando interpretar, tentando visitar Ferran Adrià, vendo a cozinha da França perder espaço nas teorias, tentando teorizar sobre a nossa comida e, nas mesas das casas, sempre o feijão com arroz, o bifinho, a farofa, a verdura crua e a cozida. O bolinho frito.

Eu me aproximei muito da cozinha do Daniel Boulud, em Nova York, recomendada pelo Suaudeau, comendo muito bem com um chef obsessivo e de bom gosto. Tornamo-nos cosmopolitas. (Os foodies.) Só que o mercado perdeu espaço para o supermercado.

De lá para cá mudou o mundo, mudou o planeta e nós mudamos um pouquinho. Somos mais tolerantes, as línguas mais curiosas, o paladar aceita o estranho com certo respeito misturado de desconfiança. Aconteceram tantas coisas que não cabem nem no jornal virtual. Voltarão na forma de picadinho em dias seguintes.

O "Comida" registrou o que pôde e o que não pôde, deu prazer a muita gente, aumentou nosso vocabulário culinário, intermediou disputas ideológico-culinárias, aumentou nossos conhecimentos, sanou dúvidas e, agora, provavelmente se espalhará pelo jornal.

Pessoalmente não acho ruim, sempre sonhei com jornais sem cadernos, com a mistura sadia de coisas sérias e de entretenimento. Vamos a mais um passo, que seja bem conduzido.


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