Folha de S. Paulo


Combináveis e incombináveis

Vamos lá, nada de muito complicado. Ganhei um pacote de macarrão feito com chocolate, imagino que Aninha Soares da Mesa III incorpore chocolate à massa, chocolate sem açúcar, é claro. É engraçado que quando nos acostumamos demais a um alimento usado de um certo modo temos a maior dificuldade de imaginarmos o seu uso noutro preparo.

Comente com alguém sobre uma galinha com chocolate, a pessoa se encolhe toda, credo em cruz, imagina logo um bombom Garoto colado numa coxinha. Não, é chocolate antes de se se tornar um doce, como conhecemos.

E quem disse que pimenta só pode ser usada em coisas salgadas? E coentro? Fomos nós que inventamos esses jeitos e nos acostumamos com eles. Ultimamente minha filha traz uma bandeja para mim, na hora do jantar, com aquilo que dá na telha dela, e que sempre combina com a minha telha. Coisas que temos na geladeira, como um abacate, um pouquinho de mel, um cereal, uma fruta, um restinho de alguma comida, vai por aí. Não sabem o que tenho inventado e que jamais descobriria por pura serendipity. (Quem não conhece a palavra, procure, que é de grande utilidade.) Feijão com açúcar, Deus me livre, vai lá na Liberdade, só tem feijão com açúcar, todos os doces tem um feijãozinho, eles não resistem.

E já provaram o Boston baked beans, com melado? É bom demais. Quem disse que feijão é para ser comido sempre com sal?

Essas são coisas muito óbvias, mas vocês vão me ajudar a lembrar outras.

Uma boa surpresa é um bacalhau feito no leite de coco, fica um delícia. E caqui duro com presunto, tudo aí no mundo a ser experimentado. Não tem nada a ver com cozinha molecular, com modas, trends, é só experimentar coisas que nunca experimentamos antes. Banana dá pano para manga, ai, será um trocadilho ou uma gracinha, banana e manga? Manga já não acredito que combine com tudo, mas banana com quase tudo, foi feita para ornar, como diria alguém de língua antiga. Banana com arroz e feijão pode se tornar vício, banana com farinha pura, banana com mel, banana frita com uma pimentinha fresca.

Pimenta em doces inventei faz muuuito tempo e fiquei amolecida quando vi a primeira barra de chocolate com pimenta, com wasabi, o chocolate precisa de um pique desses, chama a atenção sobre ele, aumenta o sabor. E aquelas coisas, doces de tamarindo com sal e pimenta dos mexicanos? Não há quase nada que eu goste tanto quanto aquela explosão de tudo na mesma hora, na mesma boca.

Isso é a introdução do artigo, mas já vi que ninguém mais gosta de ler coisas compridas, acabamos o assunto de outra vez, mas por enquanto poderíamos ir respondendo no Facebook, ou aqui mesmo, as coisas que misturamos na calada da noite.

Aprendi bem menina, com uma portuguesa, a comer pão com chocolate e uvas, um sanduíche, feito pelas crianças na época da colheita, quando não havia quem cozinhasse para elas, todos a espezinhar uvas ao som de um vira qualquer.

Uma vez um cozinheiro francês, desses bem famosos, só não digo quem é porque confundo dois muito conhecidos, estava cozinhando uma cebola, coisa que durou não menos que duas horas. Quando me aproximei, ele me apontou uma jaca que estava perto e me mandou experimentar a cebola com a jaca. Fiquei meio aflita, mas sabe como é, francês cozinheiro manda e, se você não faz, leva uma panelada na cabeça. Foi uma surpresa e tanto a cebola caramelada com a jaca doce, nunca descobri como um francês chegou a tal mistura, ele lá, a jaca aqui.

E já imaginaram o mundo que existe a ser misturado, PT com PSDB? A coisa mais saborosa que já inventei foi frango ensopadinho com castanhas portuguesas. Passei a frango ao curry com castanhas portuguesas, cheguei a curry de castanhas portuguesas somente, uma manga doce ao lado, um arroz grudento, cheio de sabor, acho que há anos é meu prato preferido.

Não que você tenha inventado. Descobri que tudo que jamais inventei alguém inventara antes, por isso não ligo muito a créditos dados a comidas. Se o ingrediente existe na terra, outro foi mais esperto que você. E não ligo muito, mesmo, para créditos. A Neide Rigo, que é meio cientista, ou inteira, sabe quem inventou a beldroega do mato e dá o crédito. Eu, como sou uma cronópio tonta, morro de alegria quando vejo alguma coisa que inventei com o nome de outra pessoa, no blog dela. Ela também gostou, penso eu, e posso até ensaiar uma dancinha como fazem os verdadeiros cronópios. (Já percebi que todo o mundo quer ser cronópio, mas quase ninguém é, assim, no estado puro. No meu caso é pura preguiça, pouca disciplina, cronópio coisa nenhuma.)

Tem os incombináveis, concordo, mas geralmente é por uma questão estética ou de tamanho, tipo uma jabuticaba, nem dá tempo de combinar e glupt já desceu garganta abaixo. Não estou falando de geleias e licores, mas da fruta mesmo.

Qual foi mesmo o começo dessa história toda? O macarrão da Aninha que o amigo fez com cogumelos escuros, com manteiga muito boa, um tico de creme de leite e só. Muito bom, melhor que tudo para uma Sexta Santa.

E não é misturando qualquer coisa não, que se chega a sabores antes desconhecidos, mas que se provam bons. Logo no começo da fusion food, fui a um restaurante moderninho e no fundo do prato havia riscos alaranjados, amarelos, assim, grudados no prato, dando cor. Fiquei curiosa, passei o dedo com força e chupei aquele adorno. Meninos, era uma coisa que conheço nas profundezas, quem já teve filho pequeno sabe o que é Redoxon, Cebion, acho que as crianças só tinham dor de garganta para tomar o remédio como um champanhe no copo. Não achei muita graça no meu prato de Cebion, mas só de implicância, onde já se viu...

Continuamos essa conversa de misturebas inusitadas, logo, logo.


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