Folha de S. Paulo


Amarelo na segunda-feira

A crônica às vezes se repete, mas ela também muitas vezes reconsidera o que disse e se arrepende. Numa crônica do meu primeiro livro, sob o nome de "comida perversa" havia muita coisa vendida em padaria e uma delas era o ovo colorido. E ele continua lá, impávido, sem mesmo ter noção de por que o coloriram. Passaram-se 25 anos e comecei a ter um certa ternura por eles.

Já aconteceu com vocês de implicarem com uma pessoa que mal conhecem, ou melhor, não conhecem absolutamente, e ao lerem uma opinião deste seu "face enemy" mudarem imediatamente a sua, calejada de muitos anos? Pois foi o que me aconteceu. Eu julgava minha zinimiga com pouquíssimas luzes, enjoada, sem brilho, boazinha, e no momento que a vi criticando os ovos coloridos e o champanhe barato, troquei a casaca imediatamente, rodei sobre os tamancos.

Ora, por que existem os ovos coloridos? Quase ninguém sabe, nem os padeiros. A ideia é emocionar, tornar diferente, acrescentar, mexer com o mágico, com o lúdico, torná-los mais agradáveis. Uma gotinhas de kitsch, românticas, contribuem para o belo, e é muito difícil encontrar alguém que não tenha lá sua pequena tendência. Quando vejo aqueles apartamentos nus, brancos, espelhados, fugindo do kitsch, sinto imediatamente aquele toque disfarçado, se escondendo. Kitsch demais.

Não percebem os padeiros que o ovo já vem completo, com todos os seus adjetivos, e que pintá-lo pode levá-lo a engendrar o conceito de kitsch? (Há uns livros sobre o assunto muito fáceis de ler como o de Gillo Dorfles, me enrolei num de Hermann Broch que me faria levar a vida para descobrir as citações arquitetônicas e mais e mais.)

Pois bem, por culpa de minha inimiga grátis, já não implico mais com ovos pintados. Já não os acho caipiras. São feitos para agradar e tenho desconfiança profunda que suas cores marcam também o dia em que foram cozidos. O amarelo na segunda, o vermelho na terça, o verde na quarta e assim, na medida em que vão sumindo da vitrine, o pintor sabe os que estão mais velhos e devem ser retirados. Há muitos e muitos anos fiz uma enquete no face e quem me colocou nessa viagem foi um dos irmãos Klotzel, o cineasta, se não me engano.

E ninguém fala daquele esplendor de ovos fake de chocolate nas nossas cabeças, ovos que nem kitsch são, e que conseguem ultrapassar o conceito, pulam o camp e são, de verdade, muito loucos, se dermos atenção aos seus recheios inacreditáveis de tão ruins.

Pelo menos o ovo pintado conserva sua identidade, e se bem cozido não passa de um ovo, como qualquer outro.

Nunca sinto desejo por ele, pois está sempre junto do torresmo e o torresmo me chama com muita malícia e eficiência. Em matéria de ovos, prefiro os fritos para comer, mas acho que os branquelos das galinhas estão ali, já perfeitos e prontos para se transformar em arte com A maiúsculo. Me lembro de uma marca de bebida famosa, uma vodca, que nos pediu uma festa, mas não tinha dinheiro para gastar. Como vocês sabem, o excessivo barato também pode ser belo. Mandei que cozinhassem 600 ovos e os carimbamos com o logo da bebida. A pirâmide chamou a atenção, era uma bebida famosa, e comeram-se os ovos acompanhados por cálices transparentes da bebida forte. Do lado deles... sal, o sal da terra. Na hora da fome não há nada mais apetitoso do que o simples.

Satisfeita com o resultado, outra vez em que o dinheiro não se queria mostrar, pintamos centenas de ovos de preto nanquim, brilhantes,que deram um tom de classe à festa branca de uma casa de móveis. Colocados em um lugar famoso pelo bom gosto, entraram na onda.

Ainda me lembro que a nossa amiga Suzana florista, inspirada por tanto ovo, inventou um emaranhado de arames de galinheiro e dentro deles, artisticamente aninhados, os ovos de galinhas poedeiras. Nunca fizemos feio com eles, pelo contrário, quase chegamos a fazer arte, se é que não a fizemos sem querer.

Agora, na Páscoa, o que iria melhor no centro da mesa, uma vasilha de ovos caipiras ou um dourado e roxo ovo em franjas brilhantes recheado com brigadeiro de açaí?

Tenho cá minhas dúvidas. Bregas e kitsch são aqueles que nos machucam a cabeça nos supermercados, fakes, insidiosos no desejo de serem comprados.

Minha neta está morando em Londres e num passeio ao Brasil veio almoçar comigo trazendo ovos empanados ou bolovos, comprados na Feirinha da Benedito Calixto. O que se faz por uma neta, já tinha almoçado, não gosto de ovo empanado, mas não me fiz de rogada. Fui engolindo metades e metades para experimentar e nem roguei pragas e bloqueei a neta, como fiz com a inimiga gratuita do Face. (Tenho que confessar que o motor da implicância foi o ciúme. Eu, que me lembre, nunca tive ciúme de amigos, dessa vez tive, e braba.)

Vou dar umas dez receitas de ovos na página do Facebook, que acompanham essa crônica virtual da Folha. Receitas certas e boas, prometo.


Endereço da página: