Folha de S. Paulo


Receitas einsteinianas

Einstein previu as ondas gravitacionais, ok, era fera o homem, mas o que são as ondas gravitacionais? Praticamente, o que poderemos arrancar delas? Ouvi dizer que chegaremos a captar fragmentos, confetes, pedacinhos coloridos de saudade, sons, fechos de cartas de amor, meias receitas de bolos de passas, um caneco de bom vinho. O grito de um ferido de
guerra, um arroto medieval todo feito de enguias, o zumbido de muitas abelhas invisíveis, um prenúncio do mel.

Há que se especializar em ler as ondas gravitacionais. Alguns serão tomados por loucos que ouvem vozes, mas não, é científico, podem confiar na rolinha recheada de formigas, já existia lá nas profundas um Alex, as pessoas se repetem através do séculos reparem que nas viagens sempre encontramos nossa vizinha, dona Hermínia, em Herminias variegatas, são muitas.

Não vai ser fácil separar o que é comida de alguns outros bichos que voavam, mas não tem importância, ficaremos sabendo mais um pouco daquilo que também não existia, inventaremos receitas para eles e não vai haver onda gravitacional que nos desminta, elas também não sabem, são carregadoras dos pedaços vividos por outros, apenas mensageiras.

Eu gostaria de meia receita de bolo de Penélope, que quando não bordava colchas cozinhava muito bem, quero ver Silvio na neve e perguntar o segredo do ovo frito de clara tão branca.

Como é possível reconstituir receitas? É que os homens se tornarão pesquisadores das ondas einsteinianas e enxergarão numa simples salsinha o futuro do mundo. A salsinha muito verde ornamentando o prato do cônsul e nós imitaremos, porque temos saudade daquela coisa que se foi e nunca mais se mostrou.

Tudo vai ser lento, aquela receita em etrusco não vai rolar, a não ser que chamemos alguém, mas no intervalo pode haver a grande ventania que rolou com o etrusco também.

Outro incômodo no caderno de receitas do Einstein vai ser a mancha das lágrimas, do choro convulsivo, ao sentirmos a barba do pai quase roçando nosso rosto e o cheiro do cachimbo dele, fleeting. Quero ver as mãos da minha mãe cortando a couve, será mão dela menina, ou enrugada pelo tempo? Vai ter comida de riqueza e de pobreza, temos que adivinhar qual é a qual, comida muitas vezes engana. Pode ser um confete da fome e acreditamos numa nouvelle cuisine dos tempos das partículas subatômicas.

Queremos ver trechos do carvão se incendiando, o bicho negro sendo assado nele e a imagem fugidia do homem de bunda escura. Ah, se quero provar a polenta das estrelas, e o peixe das profundezas insuportavelmente misterioso, e a maçã mordida, e os ovos gordos de pata, a moringa exsudando umidade.

Ninguém nega que vai ser difícil compilar esse caderno, vai ter enganos sutis de coisas já mastigadas, de suspiros, de cauim, de balas de goma pagas na caderneta.

Vai ter fruta, olho do dragão e pitomba, e muita jabuticaba podre. E as frutas estarão amadurecendo no longo processo de Einstein ou conservarão a acidez primeva?

As ondas consumirão nossos dias, nossas noites, numa TV vintage, olhos cansados e vermelhos de sintetizar toda aquela informação dos milênios. Só nos levantaremos dos nossos fogões voyeurs quando nos chamarem para o almoço de salada de alface e tomates e pepinos, arroz com feijão, asa de galinha e farofa na manteiga.


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