Folha de S. Paulo


Beiradinhas queimadas

"A gente se embala
Se embora, se embola
Só para na porta da igreja
A gente se olha
Se beija se molha
De chuva, suor e cerveja..."

Não é fácil.

Não é fácil, todos hão de convir. Embolados de chuva, suor e cerveja, a música nos ouvidos, as mulheres tão lindas, as mulheres são perfeitas, os homens nem tanto, mas se precipitam pela avenida vestidos de donos, de malandros, de lordes, bandidos, índios de cocar, senhores vestidos tropeçando nos próprios desejos, escravos sem grilhões, só o que eu quero é sentir o seu corpo molhado, mas acabou-se, agora na igreja é a cinza, é a lembrança do gozo, a vida que rói, a boca amarga que diz que ao pó voltaremos.

Eu não sabia que as cinzas são feitas das palmas secas que tenham sobrado do ano que passou. De qualquer palma, mas a maioria delas na procissão de Ramos é a palmeirinha de sagu, aquela de cheiro forte e almiscarado, cheiro de besouro amassado, como diz a mãe de um amigo.

E com a imposição das cinzas temos que esquecer a colombina e o pierrô. Mas esquecer de vez? Purificar, limpar? Elevar o espírito acima da carne? Deixar tudo para trás? Negar os sentidos? Nem pensar, os cozinheiros perderiam todos os seus dons se tentassem separar a alma e o corpo.

Não, os cozinheiros querem rir, querem ser felizes, querem provar a comida boa. Só com o espírito não dá pra cozinhar.

Mas essa é uma crônica de comida e como o cozinheiro precisa de todos os sentidos, nada de renunciar às tentações, deixar a vida para trás, espiritualizar-se. Muito alertas, podemos é nascer de novo, aos poucos, mas jamais renunciar, deixar para trás. Temos quarenta dias para a Páscoa.
Devagarinho se vai ao longe. Podemos começar com assunto que já tratamos no jornal, as cinzas, os carvões, a fumaça que defuma.

A imposição das cinzas na testa é para os outros. O cozinheiro vai comê-la, vai fazer dela alguma coisa saborosa para o outro.

Para começar temos o Andoni, o adorável cozinheiro de comida excelente, dono do Mugaritz. Já veio bastante ao Brasil e desde o começo se mostrou cheio de ideias novas, algumas coisas bem simples que passaram para nosso cardápio de tão deliciosas, como as suas rabanadas de brioche com amêndoas, de uma leveza ímpar. De vez em quando exagerava, como quando pegou belas maçãs e tirou o miolo, um cabinho daqueles que retiramos com um gadget, deixou a maçã de lado e nos serviu aquilo de sobremesa com a desculpa que depois de comer a maçã todos os seus clientes comiam aquela parte central também e ele logo imaginou que deveriam adorá-la, senão não a comeriam.

Comprei seu belíssimo livro, o último, certa que iria encontrar muito caldo saboroso, muita florzinha do bosque, mas para meu desaponto estava com mania de carvão e de cinzas e seu prato principal era uma vitela...queimada.

Não devíamos estranhar muito, pois quantos de nós gostamos das beiradinhas queimadas das torradas, das pizzas, do rosbife na sua parte mais fina? Poia a moda pegou e não foi embora.

Na Inglaterra estão vendendo o carvão em pó para várias comidas, como o queijo negro, e no Japão faz grande sucesso o hambúrguer preto. É bonito mesmo, peguei as fotos na internet e vocês podem ver on-line, ilustrando essa crônica.

E o alho negro que a Marisa Tiemi Ono introduziu aqui? Não sei o segredo, mas acho que fica numa sala de defumação por dias e dias. Será? Talvez não, mas a cada hora lemos sobre algum restaurante novo enfumaçando linguiças, presuntos.O alho negro é saboroso, delicado, e enfeita qualquer arroz muito branco, saladas, tudo que precisar de um contraste.

Tenho visto na TV documentários de países distantes em que o cozinheiro põe fogo em bambu e usa as cinzas na comida. E uma amiga chegou aqui com o mais viciante dos aperitivos comprados na Liberdade. Amendoins com uma capinha de cinzas, de carvão de bambu. Viciantes. Ah, as ilustrações vão mostrar como a moda pegou. As cinzas e o carvão são o novo negro e nada melhor para se comer na Quarta-feira de Cinzas para gente arrependida de tanto dançar. Regozijem -se!


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