Folha de S. Paulo


Não tem comida no Carnaval

Pensei que nunca mais falaria do Carnaval. Já tinha cumprido a missão. Não teve um ano que deixei de lutar por ele, de chorar por uma tradição tão nossa, imprescindível, alimento de alma, alegria do corpo. Pois o Carnaval ia morrendo, os cordões não existiam mais, os bailes eram ridículos, sumiu a pândega dos concursos de fantasias, Clóvis Bornay, os índios com seus cocares despencando, os homens vestidos de mulher. Onde tinham ido parar tanto riso, ó quanta alegria, mais de mil palhaços no salão? Foi a camélia que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu?

Oi, abre alas, que eu quero passar... E a cultura das escolas, aqueles carros pesados, empurrados, com seus egípcios e pirâmides ora entalados na entrada ora na saída, e as mulheres, lindas, as bundas improváveis, ai, morena, deixa eu gostar de você, mas a mulata é a tal, é a tal! A coisa mais bonita do Carnaval inteiro, dava gosto ver tanta beleza sassaricando, cheias de confete, pedacinhos colorido de saudade. Não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar, o morro foi feito de samba, de samba pra gente chorar.

Acho que a última vez que vi uma mulher espontânea e dionisíaca na passarela foi quando Luma de Oliveira desfilou de peito nu, mas sem "se-mostração", estava curtindo a dança, a lua te invejando fez careta, porque tu não és desse planeta!!! Descera à terra para se divertir. Foi um sucesso Allah, la, la ô-ô,ô, ô. Mas que calor, Ô ô ôô, atravessamos o deserto do Saara... Quem te inventou, meu pancadão, teve uma consagração!

No ano seguinte lá estava ela de novo, mas para ser vista, consciente. Não tinha mais graça, estava acabando o espírito do samba. Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim, ah, meu bem não faz assim comigo não, você tem, você tem..... As marchinhas muito alegres e buliçosas, mas o que emocionava mesmo era a dor de corno, a saudade, a felicidade perdida, bandeira branca, amor, não posso mais, pela saudade que me invade, eu peço paz.

Foi assim muito tempo, perdemos o jeito, nem entendíamos como um dia tínhamos sido tão inocentes, tão antigos.

Não importa, achava isso também, mas tinha esperanças de um renascimento. Fracas esperanças. Saudade, mal de amor...

E ele, acreditem, voltou –para alegria de muitos–, despudoradamente bobo, criança de tudo, brincalhão, sem vergonha. Quem sabe sabe, conhece bem, como é gostoso, gostar de alguém! Não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça. Venha, veja, deixa, beija, seja o que Deus quiser!

O que foi que aconteceu? Qual o milagre das bandas enchendo as ruas sem se lembrar da zica?

Tem gente que prefere morrer do que perder um Carnaval, porque perder um carnaval é perder o estímulo, é lá que as pessoas se energizam para aguentar o resto do ano, é lá no corpo desnudo, no suor, na beijo melado, naquele pierrô que te abraçou, que te beijou, meu amor! Tanto riso, tanta alegria, vou te beijar agora, não me leve a mal, hoje é Carnaval.

Carnaval, ritmo profundo, é cordão, é banda, voltou tudo, meus olhos não acreditaram nas multidões desse ano. Ah, já ia me esquecendo, não tem comida no Carnaval, só comida de alma, oi, coisinha tão bonitinha do pai! No Carnaval as águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar, eu passo a mão na saca, saca, saca-rolha, e bebo até me afogar, deixa as águas rolar.

Ai, ai, ai, ai, está chegando a hora, o dia já vem raiando meu bem, eu tenho que ir embora! E as pastorinhas pra consolo da lua......

Ele, o Carnaval, voltou. Oba!


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